Silêncio Filme

Silêncio | Scorsese em busca do sofrimento cristão… muito sofrimento mesmo


[dropcap]M[/dropcap]artin Scorsese volta ao tema religioso depois de longo hiato (seu último foi A Última Tentação de Cristo, na década de 80) em uma obra que lida com sofrimento cristão em um nível quase que metafísico. Silêncio nos leva ao Japão feudal e a miséria de um povo, lá encontraremos padres jesuítas dispostos a tudo para converter fiéis, mesmo que estes fiéis e os próprios padres estejam sendo sumariamente torturados e executados.

Este é um filme que enxerga a realidade principalmente pela ótica cristã, e apenas Scorsese conseguiria dedicar tanta paixão à causa. Vindo de família católica, sua história demonstra até que ponto e de quais maneiras a fé cristã atingia povos ainda isolados da religião de um salvador e um deus único, nem que para isso fosse necessário sacrificar a própria vida. E há, acredite, vários e vários sacrifícios. A morte é uma constante em todo o longa. O filme dedica um bom tempo convencendo o espectador através do tom cerimonioso e absolutamente honesto dos padres de que naquela época a fé era a verdade em si, e espalhar a verdade é uma questão de salvamento de almas. Ou seja, não é possível deixar essa missão sem um bom motivo.

Estamos no século XVII, quando as grandes navegações, além de expandir o comércio mundial, atravessam fronteiras culturais e religiosas. Países católicos como Espanha e Portugal começam a pregar incessantemente nesse novo “mercado”. Tanto que é através de um tom amoroso e cuidadoso com que dois padres jesuítas, Rodriguez e Garupe (Andrew Garfield e Adam Driver), decidem ir ao Japão averiguar se é verdade que seu mentor, Padre Ferreira (Liam Neeson), havia negado a fé cristã e se rendido ao budismo.

Apesar de moroso e fundado em diálogos, rituais e provas de fé, a simbologia visual de Silêncio é arrebatadora. Vemos os padres cruzarem uma escadaria e um navio atravessar o mar em plongé (com a câmera exatamente em cima do cenário), como se Deus realmente observasse seus fiéis, embora, como dito pelo protagonista, Padre Rodriguez, em um silêncio ensurdecedor.

Esse silêncio se torna cada vez mais incompreendido por ele e cada vez mais insuportável conforme ele acompanha cristãos sendo torturados até a morte, crucificados, queimados, afogados. É uma história de provação do começo ao fim, com cenas fortes porque são necessárias. E se você teve convulsões em assistir A Paixão de Cristo de Mel Gibson talvez deva ir preparado ao cinema dessa vez, e mesmo que aqui os sacrificados sejam japoneses, se você for cristão deveria aceitá-los como convertidos, assim como os romanos que eram comidos por leões no Coliseu, o que torna tudo mais dramático para pessoas crentes.

Silêncio Crítica

Há diversos elementos no filme em uma história bem amarrada que tornam o roteiro de Silêncio parado, porém ao mesmo tempo fascinante. Não se trata de um filme fácil também para pessoas impacientes, e de certa forma é uma provação para o próprio espectador acompanhar o tom de desilusão, desesperança e desespero crescentes. No entanto, as discussões teológicas que acompanham o filme, protagonizadas em geral por um inquisidor japonês que parece fazer um advogado do diabo caricato e eficiente, são momentos tematicamente arrebatadores. Aliás, o roteiro, escrito por Jay Cocks com o próprio Scorsese, baseados no romance de Shûsaku Endô, chega a ser tímido ou até confuso nessa questão, pois evita entrar muito nos detalhes de cada uma das duas religiões, apenas em um raro momento. O resto é pura simbologia.

E entre esses símbolos o mais recorrente é o guia que sempre volta a atazanar Padre Rodriguez para novamente se confessar; é figura recorrente e até necessária na mitologia cristã. Se trata do fraco, que sempre peca, mas que sempre será perdoado nessa religião. É uma crítica ácida para os que veem a ironia da situação em que enquanto o padre passa por inúmeras provações ele constantemente perdoa um “pecador profissional” (que, de acordo com a própria religião, tem o mesmo direito ao paraíso que qualquer um que tenha pecado menos).

Já o “silêncio” do título ganha uma rima temática no filme, pois, sem música, os únicos sons que ouvimos são da natureza, e as canções saem da boca das próprias pessoas. E a fotografia, seja quente ou fria, ressalta da mesma forma a natureza em torno dos personagens, seja um nevoeiro eterno, uma chuva densa e igualmente perene, ou o lindo céu estrelado de uma noite tranquila. Seus enquadramentos apenas reforçam o tom sagrado e solene, pois fazem questão de exibir todos os elementos dispostos como um quadro mesmo, tentando imortalizar um momento da iconografia cristã.

E, como sempre, a religião do sofrimento depende tanto da dor que ela parece um personagem à parte de toda a “via crucis” de seu herói, que Scorsese faz questão de filmar como um evento histórico rebuscado.


“Silence” (EUA/Tai/Mex, 2016), escrito por Jay Cocks, Martin Scorsese, Shûsaku Endô, dirigido por Martin Scorsese, com Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Tadanobu Asano, Ciarán Hinds


Trailer – Silêncio

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