Maria e João – O Conto das Bruxas | Subverte o original, mas não vai além disso


[dropcap]M[/dropcap]aria e João – O Conto das Bruxas já nos conta a que veio da inversão de nomes no título até seu subtítulo tacanho e revelador. Assim como o divertidinho João e Maria: Caçadores de Bruxas, de 2013, protagonizado por Jeremy Renner e Gemma Arterton com energia de sobra, esta é uma subversão da história original, já que todos sabem que ninguém será processado por uma fábula de domínio público.

Diferente do conto documentado pelos Irmãos Grimm, aqui Maria é uma adolescente e João é uma criança que precisa de seus cuidados o tempo todo. O diretor Oz Perkins gostou do tratamento ao enredo dado pelo roteiro de Rob Hayes, que assistiu à A Bruxa, filme de 2015, empolgadíssimo com a temática feminista. Infelizmente nem Hayes nem Perkins é Robert Eggers, e as possíveis mensagens sociais que o filme pudesse conter se perdem em uma narrativa pra lá de preguiçosa.

A estética dark fantasy do longa brilha no seu lado dark, deixando escondido no porão o seu lado fantasy. Há uma certa tentativa de harmonizar magia com realismo, mas a magia é tão limpinha e pontual que o filme vai se tornando um drama fantástico. Apesar de belíssima, a estética das cores mortas e iluminadas de O Conto das Bruxas possui um grave defeito: é belíssima. Ela faz os espectadores adorarem olhar para a tela em vez de se segurarem nas poltronas aterrorizados. Os únicos sustos aqui são forjados pelo som, e mesmo assustados o filme nos indica que tudo estará bem a todo momento.

A temática mais realista coloca cogumelos alucinógenos no chão no lugar de doces espalhados pelo caminho de Maria e João, e as poções de bruxa serão feitas e bebidas sem nenhum efeito imediato. Aliás, sem efeito algum, já que a história apresenta seus conceitos sem ligar muito para as funções que eles terão na história. O exemplo é a poção do sono, que é usado de maneira boba como que para enganar o espectador mais atento que acredita ter descoberto alguma reviravolta.

Sem mistérios que agucem nossa curiosidade, seus poucos personagens são livros abertos desde o primeiro momento que aparecem. O único com um certo mistério é o que menos aparece: um lenhador interpretado por Charles Babalola que acaba salvando os dois irmão de sabe-se-lá qual criatura. Babalola não desperdiça a oportunidade de fazer as honras como um legítimo, puro e honrado mensageiro de jogos de RPG. Envolto em sombras, ele nos dá vontade de sair da sala e entrar em outra. Sabe como é, ver um filme diferente, que não esteja passando um revisionismo histórico de uma fábula de bruxas.

Enquanto isso, Sophia Lillis é uma atriz que possui presença de tela, mas aqui não lhe deram uma personagem para se sentir à vontade, como em It: A Coisa. Seu olhar é genuíno e atento. Maria está sempre prestes a tomar a melhor decisão para seu irmão, o seu protegido e parasita, e para isso qualquer detalhe da rotina da bruxa acaba passando pelos seus sentidos. Os sonhos que ela tem dentro da casa convencem melhor por sua atuação internalizada, um medo cauteloso, que mistura sofrimento na vida com o imediatismo da situação.

Alice Krige como a bruxa é uma decepção de desenvolvimento, pois o roteiro de Rob Hayes não lhe dá a oportunidade do desequilíbrio. Tudo está balanceado em uma trama macabra que espera-se que as coisas dêem errado em algum momento. Krige começa dizendo suas falas com um certo entusiasmo, mas logo ela passa ao tom monótono e assim permanece o filme inteiro, aguardando o cheque do cachê ser descontado. Nem é demérito da atriz, que está corretíssima como uma velha ermitã dona de seu próprio destino, mas seu destino é ficar eternamente dizendo frases de auto-ajuda para Maria.

A dinâmica entre as mulheres do filme é ótima, dando um sentido literal ao adjetivo empoderada que até então estava nas mãos apenas das heroínas da Marvel e DC. Porém, mesmo passando no Teste de Bechdel, isso não basta para tornar os diálogos entre a bruxa e Maria como algo além da situação que vivem. É preciso que exista uma conexão entre as duas que justifique o estado de espírito da irmã de João no terceiro ato, mas isso nunca ocorre. Como a maioria dos filmes, joga uma boa ideia no começo para se esquecer do que estava fazendo todo o resto do percurso, para nos minutos finais voltar para o que nem estávamos mais interessados em saber.

Maria e João é um filme cheio de símbolos e que flerta com o gnosticismo, mas não estamos assistindo a um trabalho de Darren Aronofsky, onde elementos vistos em A Fonte da Vida ou Noé são facilmente capturados pelo espectador, mesmo que ele não conheça muita coisa fora do circuito pop. Aronofsky domina o conhecimento em seus filmes pela sugestão visual. Neste filme de Perkins o que indica conhecimento são ícones jogados na tela, sonhos enigmáticos, um galpão misterioso e um porão sugestivo. Eles são espalhados no chão com a esperança que nós espectadores peguemos e nos deleitemos com seu sabor, independente de como ele se relaciona aos outros ingredientes da história.

Pegue aquele triângulo, por exemplo, usado no início da história e no formato da casa da bruxa. É um símbolo batido e genérico. Não está ligado com nada em particular. Se trata de uma alusão a três elementos, como ínicio, meio e fim, ou corpo, alma e espírito, ou até outros. Três pontos que se ligam e temos a letra grega delta, que representa mudança, ou um circuito que volta ao princípio. Isso tem lá seus significados na conclusão da história, mas o espectador provavelmente irá adivinhar muito antes. Perderá sua função após a primeira ida ao banheiro.

A trilha sonora é assinada por Rob (ou Robin Coudert para os menos íntimos). E Rob, francamente, as suas escolhas são acertadas, mas sua fonte de inspiração é visível. Você trata a única cena de ação como Mad Max: Estrada da Fúria. Você pontua a distopia social catártica como se estivéssemos em Mr. Robot. Rob, nós estamos vendo a sua colinha, bem no canto da partitura. Não se usam músicas tão marcantes na memória do espectador como combustível para criação de novas músicas, Rob. Faça como a Marvel, que pega uma música genérica que ninguém irá se lembrar e repete uma variação a cada novo filme. Pelo menos não saberemos de onde veio (provavelmente a mesma origem dos cenários; uma versão sonora do fundo verde).

A imagem de uma floresta seca e mística é poderosa, nos abraça desde o começo, com suas ramificações infinitas de galhos que racham o céu, dia e noite. A lua sobre a casa à noite evoca a mudança de humores. Eu adoraria ver um filme cuja história tem a potência que os elementos simples de uma floresta revisitados evoca, mas este filme não se chama Maria e João – O Conto das Bruxas, e sim A Bruxa, de Robert Eggers. Agora vá assisti-lo. Irá tirar o gosto das poções desse filme.


“Gretel & Hansel” (Can/Irl/EUA/Afr, 2020), escrito por Rob Hayes, dirigido por Oz Perkins, com Sophia Lillis, Charles Babalola e Alice Krige.


Trailer – Maria e João – O Conto das Bruxas

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