Cinefilia Crônica | Pagando os boletos


[dropcap]A[/dropcap]cordei muito cedo, antes até do dia estar cedo. Tomei um banho no piloto automático, dispensei o café da manhã em casa e corri para o ponto de ônibus. Dei bom dia às mesmas pessoas de todos os dias, cumprimentei o motorista e sentei no mesmo banco, praticamente reservado para mim no caminho de uma hora até chegar ao trabalho.

A tremedeira na janela não me deixa dormir. As pessoas tão felizes àquela hora me irritam um pouco, então prefiro me atualizar das notícias com os olhos na tela do celular, já que meu chefe é chegado em dar advertências a quem se distrai com esses aparelhinhos viciantes. Ele tira a produtividade, costuma dizer em suas reuniões com slides coloridos e sonífero vindo do ar condicionado.

Tomei um susto quando dei de cara com a foto do meu ator favorito nos grandes portais. Não era possível que ele tivesse morrido antes dos 100 anos, tão cedo quanto meu despertar diário. Respirei aliviado, era uma entrevista em que falava do lançamento de seu novo filme em um serviço de streaming.

Tentei ver um pouco do bate-papo e notei certo enjoo, como se não tivesse tanta vontade de estar ali, divulgando o novo trabalho. Aparentemente, era uma trama envolvendo sequestro e tiros para todos os cantos dados por um protagonista envelhecido. Nada perto daqueles seus clássicos premiadíssimos, que lhe renderam troféus dourados de melhor atuação e uma dezena de indicações.

O novo filme parecia muito com os lançamentos dos últimos dez anos. Feito para cumprir tabela ou pagar o aluguel. Só. Ele já não se esforça para nos convencer e usa seus conhecidos tiques em momentos-chave, talvez para aumentar o valor milionário do cachê. Sabemos que esta é outra produção muito distante das obras mais memoráveis, mas a cada dia que passa, percebo os tempos mais memoráveis cada vez mais distantes.

Senti uma empatia fora do comum. Acordar muito cedo, antes de ser cedo, para pagar o aluguel… As coisas não andam fáceis e é um equívoco recusar um trabalho rentável e irrelevante, com um chefe incompetente e arrogante, mas dono da situação. Eu sei que eu sei mais, bem mais sobre a função que ele exerce mal. Meu ator favorito sabe que esse novo filme vai passar como uma irrelevância em sua carreira, mas os boletos do mês não se importam.

A companhia de energia elétrica não avalia meu currículo qualificado demais para aturar reuniões enfadonhas. A empresa que distribui água é indiferente às tantas lágrimas derramadas no filme que rendeu um discurso inesquecível no Oscar: se a conta do mês não for paga, o jeito vai ser usar baldinhos para a descarga.

Mesmo acompanhando essa carreira notável desde que aprendi a ler legendas, o dia de maior identificação era o do rosto cansado, respondendo à repórter como se lesse um teleprompter, querendo ir para casa jantar. Quase ninguém se aposenta mesmo, nem meu ator favorito é capaz dessa façanha.

Guardei o celular no bolso, dei sinal, desci e caminhei por um quarteirão até o escritório. Eu não perderia meu tempo assistindo o novo filme. Meu ator favorito não gostaria de ser visto ali, decadente e cansado, fazendo o mínimo para fechar o mês com as contas no azul.

Eu entendo. Não queria que me vissem aqui, me submetendo a dias cansativos depois dos tempos áureos de um estágio dos sonhos e uma carreira prodigiosa ao me formar na carreira sonhada. Mas os boletos não ligam para isso.

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