Cinefilia Crônica | Cine Jangada


[dropcap]H[/dropcap]á um cinema na minha rua. Ou melhor: a quatro quadras da minha casa, há um shopping. Igual à maioria dos outros. Tem estacionamento gigantesco, lojas de roupas similares, joias e utensílios domésticos à venda, uma praça de alimentação com fast food e pouca comida de verdade. A poucos passos dela, cartazes se agigantam enquanto gente cafona se posiciona para tirar selfies. Não sei quantas salas têm por ali, mas só os blockbusters são bem-vindos.

E nada de filmes legendados. Como sou daquele tipo de gente chata que reclama dos “macacos me mordam” ou “os tiras estão chegando”, é raro eu subir as escadas rolantes e passar duas horas vendo um filme por ali. O público rejeita as letrinhas embaixo da tela, dizem.

Preciso pegar um ônibus ou VLT para ir a uma das salas na cidade vizinha. Nas poucas vezes em que gasto a sola de um dos meus tênis de corrida (eles são sempre mais confortáveis) para ver um filme brasileiro por lá, passo pela rua Martim Afonso, no centro da cidade, e sinto saudades do primeiro cinema que frequentei.

Por lá, funcionava o Cine Jangada. Minha cidade tem um complexo de inferioridade grande. Os moradores daqui esbanjam um complexo de vira-lata ao ver a vizinha Santos, que diz ter pedigree os melhores tudo da região.

A animação Mulan foi a responsável pela minha estreia diante da telona em uma excursão do colégio. No Jangada, havia um famoso remendo branco em formato de triângulo no centro da tela. Nada que atrapalhasse o desfrutar de um filme, mas era daquelas lendas urbanas comuns na escola. Entre outras coisas, diziam que o lugar era assombrado e que haviam feito uma mandinga para não ser um cinema igual ao da cidade vizinha.

O Jangada era o último sobrevivente de uma série de cinemas que se renderam, em suas épocas, a bingos ou igrejas neo pentecostais. Localizado em uma rua estreita, que dá acesso ao centro comercial de São Vicente, fez parte da minha infância e adolescência.

Tinha poltronas maltratadas e uma única sala. Mas era um patrimônio da cidade, um cinema real, não um puxadinho entre elevadores e lanches gordurosos de shoppings centers. Ele sobreviveu até meados da década passada, quando deu lugar a uma varejista especializada em entupir nossas veias de carnês e móveis com cupim.

No Jangada, lembro ter visto dezenas de filmes ali. Homem-Aranha, MIB, Star Wars, e até Xuxa e os Duendes. Este fui meio que obrigado a assistir acompanhado da minha irmã mais nova. O filme não foi tão bom, o programa foi bem legal, o medo de ser visto no centro da cidade entrando em uma sessão de um filme de menininha era constante. Bobagens da infância.

Ainda lembro os cartazes atrás de uma vitrine, o letreiro típico e a fila para a bilheteria chegando à calçada nas grandes estreias. Outro dia, passei na frente do lugar que abrigou o Jangada sei lá eu por quantas décadas. Virou uma loja de roupas. Camisas iguais, bermudas idênticas, o comércio de um estilo de vida pasteurizado. Senti um pouco de tristeza.

A mesma amargura apareceu ao notar os filmes em cartaz no cinema, digo, no shopping da minha rua. Não sei quanto dinheiro gastei no mês passado com ônibus e VLT para ver as estreias na cidade vizinha. Se houvesse ressurreição, uma nova vida para o Cine Jangada não seria má ideia.

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