Cinefilia Crônica | Áquila no metrô


[dropcap]Q[/dropcap]ueria esticar o corpo na minha cama logo. Não teria problema se dormisse de uma vez, com roupa social de brechó, para acordar no dia seguinte sem despertador. Levantaria descansado, depois de um sábado cansativo de trabalho.

O cansaço me consumia e tentava me convencer a cochilar no banco do metrô. Percorrer a extensão de uma linha inteira demora mais que as longas viagens de lazer nas férias.

Dei lugar para a senhora com pouco mais de 70 anos sentar ao lado do neto, lá pelos seus 18 anos. Não sou bom com números, nasci para as Humanas, devo errar grosseiramente essa conta rápida.

O homem sentado ao meu lado ignorava a conversa dos dois. Pareciam estar indo a um passeio sem a autorização dos pais do garoto. Não fui capaz de tapar meus ouvidos, perdi o sono.

– Mas, olha, aquele canal é um dos últimos da TV a cabo. Sabe, não sou muito boa com a tecnologia e não tive como ver qual era o filme daquela noite.
– Vó, é só apertar o botão do meio e a setinha pra direita…
– Eu sei, eu sei. Mas eu sou velha, esqueceu?
– Tá bom, vó, continua…
– Como eu dizia, esperei começar o filme. Eles sempre passam um filme velho nesse horário, acho que é às dez. Passou um que eu vi umas vinte vezes, mas nunca enjoo.
– Qual?
Feitiço de Áquila. Já viu?
– Não vó, é antigo?
– Antigo não, é velho mesmo. É mais ou menos assim. Tem um bispo apaixonado por uma mulher, mas ela ama outro. Com raiva, ele faz uma maldição sobre eles. De dia, ela é um falcão, de noite, ele vira um lobo. Eles não conseguem estar juntos, mas tem lá uma maneira de quebrar esse feitiço.
– Nossa, vó, que triste.
– Não é, menino?
– E tem algum famoso nesse filme?
– Ai, meu neto, tem sim. Mas eu sou velha, não lembro o nome dela. Sei que é uma loira muito bonita, seu avô era apaixonado por essa atriz. Não é da sua época, mas não é tão velha que nem sua vó.
– Vó, conta mais desse filme, é em que época?
– O filme é dos anos 1980, você tava longe de pensar em nascer. Mas a história do filme se passa em algum século passado.
– Vó, não é nessa estação que a gente desce?
– É sim, me ajuda a levantar. Então menino, eles nunca se encontram, mas tem uma maneira de quebrar isso e…

Levantaram, aproximaram-se da porta. Ela abriu, foram embora. É provável que eu nunca mais os veja, como no encontro impossível do filme descrito pela senhora. Tive vontade de revê-lo. Cheguei a casa, tomei um banho, procurei-o, não encontrei. Dormi antes da meia-noite.

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