Vida em Movimento | Desconfie


[dropcap]V[/dropcap]ida em Movimento, documentário que propõe mudanças em nossos hábitos para combater o sedentarismo sistêmico das grandes cidades, me fez lembrar de uma notícia bombástica mês passado sobre a Coca-Cola ter influenciado pesadamente as diretivas chinesas no combate à obesidade nos últimos trinta anos. Como um filme sobre sedentarismo me fez lembrar disso? Simples: a estratégia corporativa é basicamente a mesma.

A Coca-Cola, junto da Nestlé, McDonalds e Pepsi, criaram o Instituto Internacional de Ciências da Vida (“International Life Sciences Institute”, ILSI) como uma ponte entre governos, academia científica e indústria, fornecendo evidências para tomadas de decisões políticas sobre nutrição, segurança alimentar, além de controle e prevenção de doenças crônicas. Agora, você deveria estar se perguntando: por que corporações conhecidas por vender “junk food” estão tão preocupadas com a saúde de seus consumidores?

Na verdade não estão. O objetivo dessas empresas, de acordo com um extensivo estudo em Harvard publicado no British Medical Journal, é desviar o foco sobre alimentação saudável priorizando um estilo de vida baseado em atividades físicas. Ao chamar a atenção dos governos e populações para a necessidade de exercícios para uma vida saudável a indústria de alimentos ganha um respiro, e uma desculpa, para que pessoas continuem se alimentando mal através de bebidas açucaradas e alimentos pobres em nutrientes.

O assunto é complexo demais para este texto, mas esses dados nos fazem levantar o nível de ceticismo sobre exercícios sendo a solução para tudo, além do nosso senso crítico a respeito do que mega-corporações alimentícias andam fazendo com seu dinheiro a título de influência governamental.

Mas voltando ao texto, o que me fez relacionar o documentário de Eduardo Rajabally foi apenas um elemento em comum: de onde vem o dinheiro. Um dos maiores patrocinadores deste filme é a Ambev, a maior produtora de cervejas do mundo. Considere a introdução como um conselho para que mantenha um ceticismo saudável a respeito do que se vê em documentários. E não apenas desse filme, mas de todos os outros que se espalham facilmente pelos cinemas e, principalmente, os serviços de streaming, que através de centenas de produções encomendados são os novos portadores de “notícias confiáveis”. Documentários são como livros publicados por editoras que almejam o lucro: não há a necessidade de rigidez científica sobre as informações passadas ao público.

Mas sobre o filme: Vida em Movimento se trata de uma série de visitas feitas em países com alguma proposta para reverter o sedentarismo das grandes cidades. O filme não nos mostra por que o sedentarismo é ruim, preferindo se manter no senso comum e no velho “pesquisas indicam”, “já é provado” e outras frases genéricas de telejornal, um esforço que evita alguém se aprofundar no tema. Este se trata de um trabalho superficial, didático e burocrático. Ele confia na percepção do seu público sobre um conhecimento comum que hoje nos parece óbvio: uma vida com exercícios é uma vida mais saudável.

O filme é superficial porque ele nunca está verdadeiramente disposto a ir fundo nos motivos de doenças. Seu foco está mais nos planos de urbanização e vida moderna dos habitantes das cidades, mas mesmo nesse tema tudo é resumido. “Há apenas duas formas de urbanizar uma cidade”, diz um entrevistado em algum momento. Ao mesmo tempo não notamos uma conexão entre as formas de se viver nos EUA, Copenhague, Coreia do Sul ou Brasil. As regiões populacionais mostradas parecem ter diferentes escalas e estilos de vida.

O filme é didático porque ele vai nos apresentando um a um dos exemplos que achou interessante citar, faz um breve resumo e nos mostra alguns casos de uso. É conhecimento, mas monótono, anedótico. “Bom, pelo menos é didático”, você deve pensar, mas contrariando o próprio filme, que mostra formas de fazer a educação nas escolas ser mais interessante, ele próprio não é um bom exemplo, pois inspira bocejos em espectadores adultos, o que dirá pessoas mais jovens.

O cerne do problema é burocrático. O formato do filme e a falta de paixão no seu texto, sempre soando neutro e distante, nunca nos faz ficarmos empolgado com o conteúdo. O que é um problema grave do formato, por mais que o conteúdo seja fascinante.

Porém, este também é um problema de conteúdo, pois nada do que vimos no filme é inédito. O uso indiscriminado da tecnologia dos celulares e tablets, uma das críticas do filme, conectados à internet nos daria essas informações, muitas vezes em formato mais interessante, e anos, décadas atrás. O exemplo de Copenhague e seus cidadãos andando de bicicleta por toda a cidade não apenas está datada, mas é praticamente conhecimento comum e usado em inúmeros trabalhos escolares.

Tentando fazer um apanhado contemporâneo sobre estilos de vida que tentam fugir do sedentarismo surge apenas o senso comum. Este não chega a ser um alerta sobre nossos hábitos, mas apenas uma constatação. E quando os índices de obesidade piorarem ainda mais, estaremos nos lembrando sobre o foco excessivo dado às atividades físicas. E continuaremos ingerindo “fast food”. Talvez essa seja a maior reflexão do nosso tempo.


“Vida Em Movimento” (Bra, 2019), escrito por Selma Perez, Eduardo Rajabally, Márcio Atalla, Joana Kfuri baseados na ideia original de Márcio Atalla, dirigido por Eduardo Rajabally.

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