Temporada | Cai na real


[dropcap]O[/dropcap] filme Temporada é um retrato natural do cotidiano de uma cidade e sua cultura sob o ponto de vista de um ser humano em mudança. Mudança de cidade, de postura, de atitude. Pode chamar de redescoberta ou “cair na real”. Pode chamar de fantasia ou crítica social.

Juliana, morando sozinha e inspirando “dozinha”, brinca com uma bola sendo atirada na parede. Ela coloca uma música no celular e para amplificar o som o coloca dentro de um balde. As ruas de uma metrópole de do estado de Minas Gerais parecem sempre tranquilas (e quem já foi pra Minas sabe que é assim), e ainda que alguns alardeiem o problema da falta de segurança, a maioria sabe que até a periferia da cidade é “tranquilim”.

A grande virtude do filme dirigido e escrito por André Novais Oliveira é não forçar demais um lado da questão. O filme flui em ritmo e em ideias, e se você não for prestando atenção no silêncio e na solidão de Juliana dificilmente vai aproveitar a sessão.

A moça está em uma cidade maior da que onde nasceu e cresceu, transferida para um emprego que conseguiu via concurso público: fazer parte da equipe contra o mosquito da dengue. Ela aguarda o marido ansiosamente, pois espera que essa mudança faça o passado traumático ficar para trás. Os detalhes desse passado você confere em uma das melhores cenas da atriz Grace Passô. Note como seus gestos sutis revelam sua relutância em confessar intimidades com a prima. Ela serve um salgadinho para ela, beberica um pouco de cachaça, olha para a mesa, apoia a cabeça em seu braço. Enquanto isso a cena sai de uma geral com as duas pessoas e se fecha em um quadro contendo todos esses elementos. É a cena-chave para entendermos a dor interna que Juliana carrega.

Essa dor é difícil de traduzir em palavras, pois foi composta por tantos elementos de sua vida que foram deixados para trás – e que não vemos, como a distante relação com o pai viúvo – que sua reconstrução é boa parte do trabalho do filme, enquanto Juliana vai focando mais no trabalho e nos seus novos colegas, que viram aos poucos, amigos. E essa dor vai se transformando. Ela chega como a dor da solidão e vai aos poucos trabalhando tudo que ela foi e tudo que ela pode ser como indivíduo.

Note, por exemplo, a cena em que ela, tendo labirintite, é obrigada a subir na laje de uma das casas que está visitando em seu trabalho. Já no topo da casa, ela observa a paisagem, e acha tudo aquilo bonito. Na hora de descer diz que é a parte mais fácil. E é mesmo. Ela estava em declínio no começo do filme e agora que foi se reerguendo frente a seu novo status independente, descer é a coisa mais fácil que pode fazer.

O filme é recheado de ótimos momentos em que a reflexão é sugerida pelo ritmo mais lento, e a música torta de Pedro Santiago, que faz um belo trabalho elaborando notas assimétricas que revelam um desbalanço do universo e que vai aos poucos harmonizando em alguns exemplos de música clássica. E a história não marca o tempo, exceto pela transição de calor, chuva e frio. Há muitos detalhes escondidos em diálogos que soam despretensiosos, como as condições do emprego daquela equipe, e outros não tão sutis, como a revelação que um dos amigos de Juliana talvez seja pai. O filme começa sutil e vai aos poucos exagerando.

Parte disso é a sua suposta crítica social, travestida pela cartilha feminista padrão, onde a mulher se torna independente por não precisa de homem e por fazer um corte de cabelo “diferentão”. Hoje isso já soa clichê e brega. E esse é o exagero do terceiro ato que destoa de todo o resto, o subverte, dando outro significado, mais propagandista, de um drama íntimo e tocante sobre a solidão que aos poucos vira uma bandeira de militância.

Isso gera um debate curioso. Algo que parece implícito em todas as narrativas de todos os filmes que seguem esse modelo: a mudança de um estereótipo para outro. Enquanto em um relacionamento com uma pessoa que foi se afastando com o tempo gera o estereótipo da mulher casada presa eternamente ao marido, cortar o cabelo diferente e ter seus “crushes” por diversão, gera o estereótipo da mulher independente que faz o que quiser, desde que “o que quiser” seja cortar o cabelo diferente, etc.. Independente do destino de Juliana, ela se encontra em um filme inesperadamente maniqueísta que precisa colocá-la em um estereótipo; de preferência o que agrade os valores dos produtores e do diretor.

E isso sem dúvida enfraquece uma narrativa, que estava indo tão bonita pelo caminho mais sutil, mais individualista, e que vai de repente em encontro com interesses alheios ao filme. É quando a revolução se torna lugar-comum que o romantismo se perde para sempre. E é quando se perde a oportunidade de se realizar um filme inesquecível sobre como o ser humano se adapta e se conquista sempre que confrontado com a realidade.


“Temporada” (Bra, 2018), escrito e dirigido por André Novais Oliveira, com Grace Passô, Russo Apr, Rejane Faria, Hélio Ricardo.

Trailer do Filme – Temporada

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