Shame

Talvez o poder de Shame esteja na direção cheia de personalidade, talvez nas atuações sensacionais, talvez até no roteiro corajoso, mas, mais que em tudo isso, talvez o poder de Shame esteja em ser humano.

Nessa vontade intrínseca de encarar esse mundo e não julgá-lo, apenas tentar entendê-lo e compartilhar com o personagem de Michael Fassbender a dor de não conseguir ser alguém aceito na sociedade e que lhe obriga a carregar o fardo enorme de se esconder para o mundo atrás dessa pessoa normal, já que, muito provavelmente, não conseguiria combater sozinho essa doença que esfacela sua personalidade.

Fassbeder (que a cada papel que faz se mostra mais e mais um ator corajoso e seguro) sofre então com uma espécie de obsessão sexual, que praticamente arranca dele todos os traços de sua humanidade, vagando pelo apartamento vazio depois de uma noite de prazer com a apenas a companhia das lamúrias de sua secretária eletrônica.

É isso que o diretor Steve McQueen procura: pintar esse quadro triste e vazio desse personagem, já que antes mesmo de qualquer coisa, Shame olha para essa cama vazia e amarrotada como os resquícios desse homem, quase envergonhado, de viver nesse mundo. Um mundo onde ele persegue esse prazer mesmo com total estranhas no metrô, e a mesma vergonha que lhe faz sofrer, mas apenas dar a volta e continuar sua vida quando percebe que sua doença não lhe permite nem ao menos poupar o próximo do gosto picante desse tipo de aventura sexual.

A vergonha talvez de um passado que volta a bater em sua porta com a chegada de sua irmã, Carey Mulligan (sensacionalmente sensível e conseguindo aproveitar perfeitamente o paradoxo entre ela e o personagem de Fassbender), uma cantora sem muito sucesso que carrega consigo, ao contrário do irmão, o desejo de amar (não no sentido sexual) e a carência de ser aceita.

Talvez, de modo sensível e chocante, o roteiro do próprio McQueen, em parceria com Abi Morgan, trate disso, desses dois lados do ser humano quando levados ao extremo. Do desejo insaciável de obter prazer, mesmo que para isso precise abdicar de toda sua personalidade, ou que bate de frente com a insegurança de não conseguir ser amado, que se contenta com o resto dos outros só para não se sentir sozinho.

Shame então trata dessa vergonha de ambos os irmãos, talvez por algo que tenha acontecido no passado, talvez até um incesto que esfacelou a personalidade do irmão e criou esses cortes nos pulsos da irmã, mas, mais do que isso, talvez Shame seja sobre ele não conseguir conviver com ela, talvez tomado pelo desejo, pela culpa, pela vergonha, ou, simplesmente, pela obrigação de ter que encarar seu próprio problema.

E mesmo que pareça pretensioso em todos seus significados, McQueen, durante a maioria do tempo, opta por resolver seus conflitos de modo completamente simples, o que, talvez, até deponha contra a própria profundidade de seu filme, já que é fácil encarar tais decisões como preguiçosas, por mais que não pareçam. O diretor então não se esconde em símbolos simples, e distorce o protagonista diante de seu reflexo, ou lhe permite fugir da dor e do desejo correndo sem destino pelas ruas durante a noite, assim como desnuda completamente os personagens nos primeiros minutos para que o espectador, o resto do tempo, tenha a impressão de já conhecê-lo profundamente.

McQueen ainda permite que seu protagonista encontre um caminho a ser percorrido diante da cura, mas de modo até inocente na hora de tratar o assunto, não permita que ele consiga se relacionar sem que seja diante daquele sexo vazio que, no fim de tudo, só deixa para trás a vergonha e a roupa de cama amassada. Mas tudo isso é levado ao espectador de modo sincero e corajoso, que não vira os olhos (da câmera) para o problema, mesmo que ele seja, para o espectador, tão doloroso quanto para o personagem de Fassbender (que sofre tanto durante o êxtase quanto durante o esforço de se curar).

Para o personagem de Fassbender, o limite pode ser a violência sem sentido ou uma procura insaciável pelo prazer a qualquer custo, mesmo que lhe valha o pouco orgulho que lhe resta, como se, nesse momento em uma boate gay escura e banhada pelo suor dos corpos se esfregando como monstros em uma masmorra, ele descobrisse que esse caminho não encontre mais limites, como na plataforma do metro onde sua irmã, perigosamente, se sente bem quase utrapassando-a. “Shame” então não choca pelas imagens, mas por mostrar, sem pudor algum, todos esses caminhos.

Mas o diretor inglês (que nada tem a ver com o astro de Bullit morto em 1980, a não ser o sobrenome), que antes disso tinha dirigido apenas o drama Hunger (também com Fassbender), parece então em uma jornada própria, uma busca estética por planos plasticamente mais marcantes e, se não o consegue de modo a entrar para a história do cinema, ainda que Shame seja composto de momentos belíssimos, pelo menos tem a sensibilidade de, quando chega perto disso se deixar manter e dar a seu espectador a oportunidade de, pelo menos por alguns segundos, ou minutos até, apreciar isso com ele.

Não só planos longos, mas sim essa vontade de aproveitar cada momento da lagrima que escorre pela face de Fassbender ao escutar a triste e emocionante versão de New York, New York cantada por Mulligan, ou tempo suficiente para encarar a dificuldade que o mesmo personagem tem ao sentar em um restaurante com alguém que ele não quer, simplesmente, esquecer na cama no dia seguinte.

Shame então carrega o espectador por esse caminho onde o irmão acaba descobrindo que o limite de sua doença talvez seja fundo demais até para ele, já que passa por ter que encarar não só sua dor (física e mental), mas ainda a dor de olhar para sua irmã, talvez a única coisa no mundo que lhe permita um sorriso (como no metro) ou uma lágrima (como na música) e vê-la sofrer pela culpa, pela vergonha ou pela necessidade de ser aceita, principalmente por ele.


Wrath of the Titans (EUA, 2012) escrito por Steve McQueen e Abi Morgan , dirigido por Steve McQueen , com Michael Fassbender, Carey Mulligan, James Badge Dale e Nicole Beharie.


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