RIP Syd Field

Não só Hollywood, como o cinema em si, é recheado de histórias deliciosas que extrapolam a arte e criam um emaranhado de referências incrível. De acordo com “as lendas” Georges Meliès era um dos caras que desviou do trem na primeira sessão dos filmes dos irmãos Lumiere, o que mais tarde o empurrou a revolucionar o cinema. E os próprios irmãos franceses talvez não sejam também os pais do cinema, já que alguns anos antes Thomas Edison criou algo tremendamente semelhante à invenção deles. Andando um pouco no tempo, Charles Chaplin sempre teve raiva de um certo première alemão que “copiou” seu bigode escovinha, e mais recentemente ainda uma das mais deliciosas, a desse cara chamado Syd Field.

Field era um jovem americano que nos anos 50 (ou 60) trabalhou por um tempo em uma produtora de Hollywood (que eu não lembro o nome) em um setor que a maioria nem sabe que existe. Era ele o responsável por ler os roteiros que chegavam e selecionar apenas aqueles que tinham potencial, mandando-os então para algum figurão que ganhava muito mais que ele e devia ser creditado como produtor executivo do filme vindouro.

É bom lembrar que, desde que o cinema é cinema, não faltam “boas ideia e boas intenções” (assim como inferno), e todas elas se transformam em roteiros que seus escritores acreditam piamente em seus sucessos. O que em termos práticos resulta em uma quantidade enorme de textos que não servem para nada e alguns poucos que merecem a atenção (em seu livro, Field fala de aproveitar um em cada 100). No meio disso estava o próprio Syd Field.

Eis então que o jovem rapaz, atolado pela falta de perspectiva e talvez pela monotonia, acabou tendo o que o dicionário chama de epifania, uma compreensão da essência de algo que surge com um estalo: dos textos selecionados, a enorme (e quase total) maioria se apoiava em uma estrutura semelhante demais. Os tais três atos.

Pior ainda, ao começar a comparar esses três momentos dentro do roteiro percebeu que eles surgiam quase no mesmo momento. Em um roteiro de 120 páginas (vulgo um filme de duas horas), o primeiro ato, onde o protagonista era apresentado junto com a problemática do filme acontecia entre as primeiras 20 paginas (em média). Sendo então que em um segundo momento um pouco maior (entre 60 a 80 páginas mais ou menos) esse herói tinha que passar por um monte de problemas antes de enfrentar seu derradeiro perigo, e a partir do resultado disso, mais algumas páginas (10 a 20) encerravam tudo. Apresentação, Confrontação e Resolução. O famoso e temido “Paradigma”

O outro detalhe são esses “plot points” (ou “pontos de virada”, “reviravoltas” ou como você queira), esses momentos que ditam o final dos atos, e, na verdade (sendo um pouco menos pragmático) empurram o personagem para o resto dessa narrativa.

E não querer ser pragmático falando de Syd Field beira o humor, já que o próprio nunca se escondeu por trás disso, principalmente ao “criar” uma fórmula que acabou servindo de ponto de partida para uma quantidade enorme de gente nos dias de hoje. Diante disso, ficou muito mais fácil escrever um roteiro que funcionasse, mesmo que sua ideia fosse medíocre. O que o tornar também pai de um “cinema” que se regula por baixo e que a maioria das pessoas nem tem contato (diretor para a TV e locadoras), ou por sorte (deles, azar nosso) acabam ganhando as bilheterias. Dois lados de uma mesma engrenagem que é movida pelo “Paradigma”.

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Field então ficou mais famoso ainda por criar esse “monstro” (no bom e no mal sentido!) e se tornar o mais importante professor de roteiro dos Estados Unidos. Isso, além de ter universalizado seus “ensinamentos” com o livro de cabeceira de qualquer roteirista, o Manual do Roteiro (depois ainda escreveu uma série de outros, mas todos tocando no mesmo assunto e repetindo suas ideias).

Entretanto, gostando ou não do “Paradigma” (e cada vez que se lê isso, parece vir acompanhando de um acorde de suspense!) é inegável que qualquer um que queira entrar nesse mundo seja obrigado a lê-lo. E mais ainda, qualquer amante, profissional, crítico ou especialista em cinema não consegue negar a importância e a quantidade de descobertas que o Manual do Roteiro trás em suas páginas. Desde estrutura, passando pelo “Paradigma” (“TUMMM!!”), por análises de personagens e uma série de outros detalhes inesquecíveis.

O curioso disso é que o mesmo Field nunca emplacou nenhum roteiro seu no cinema, o que mostrava ou uma paixão maior ainda pelo ofício de ensinar, ao, talvez, soubesse que conseguiria fazer com que seu nome repousasse como roteirista em qualquer cartaz que quisesse, independente de uma boa ideia.

Mas também é bom lembrar que Platão há muito, mas muito tempo mesmo, já tenha discutido esse três momentos de uma narrativa (em seu “Mito da Caverna”), e durante toda história da humanidade, caras como Shakespeare já seguiam mais ou menos esse mesmo esquema (é complicado sair do bom e velho começo-meio-fim). Duas referências que (para ficar só nelas, mas tendo a certeza que esses nomes poderiam ocupar página e mais páginas), sem sombra de dúvida, já serviram de inspiração para aqueles 1% de roteiros que passavam no crivo de Syd Field. Mas enfim, ele foi o primeiro a estudar isso mais a fundo, colocar no papel e facilitar a vida de todos, e diante disso ele não pode ser esquecido.

Syd Field faleceu hoje e a grande maioria dos espectadores ficarão órfãos de umas das personalidades que mais mudou o cinema moderno, mesmo que até hoje muita gente nunca tenha escutado falar dele.

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