Quem Vai Ficar Com Mario? | Funciona quando se sustenta no trio de protagonistas


Uma pena que poucas pessoas irão entender o trocadilho de Quem Vai Ficar Com Mário?. Não, não é esse Mário que você está pensando. Nesse caso o Mario vem da Mary, dos longínquos anos 90, e Quem Vai Ficar Com Mary?, uma comédia romântica dos irmãos Farrelly que chacoalhou os cinemas. Nele, a personagem de Cameron Diaz era disputada a tapas por dois marmanjos imaturos. Porém, os tempos mudaram, e mais de vinte anos depois o nosso humor mudou. Se tornou mais polido e politizado. Em resumo: Chato. Mas isso aconteceu ao longo dos anos por bem ou na marra, e por motivos fora do escopo desse texto.

Mas por falar em referências, esta é uma adaptação de uma comédia italiana de 2010 chamada O Primeiro que Disse. O plot é o mesmo: dois irmãos gays e um patriarca retrógrado. Mas não está nos créditos do roteiro. De qualquer forma ele foi atualizado com uma causa LGBTQIA+ mais ampla, atualizada. Seu diretor e idealizador, Hsu Chien, é um dos únicos no Brasil com a sensibilidade e o espírito de equipe para não transformar um projeto desses em uma “Globochanchada” cheio de estereótipos.

Não vou mentir que há, sim, um ou outro momento em que “as bichas vão à loucura”, e isso pode soar preconceituoso para alguns. No entanto, em comparação a filmes mais comerciais, este sustenta uma dignidade necessária para esta década. Seu elenco suporta seus personagens com esmero e paixão. O resultado é assombroso. Não é original nem excelente. Mas é cativante, do começo ao fim.

Não existem piadas ofensivas ou escrachadas. E o motivo disso foi a escalação da atriz Nanny People, que na coletiva de imprensa comentou que apenas aceitou o papel escrito especificamente para ela se fossem retirados os exageros caricatos e o final derrotista. Um dos inúmeros exemplos do nível de abertura de seu diretor, que com o apoio dos quatro co-autores do roteiro acatou as mudanças requeridas por People.

A história reciclada do filme italiano investe em novos personagens que modernizam a trama, e incidentalmente a tornam mais engraçada. Há uma coach empresarial feminista interpretada pela ótima Letícia Lima cuja piada frequente é corrigir sutilmente todas as pessoas que não a chamam pelo nome. É engraçado por sugerir um estereótipo, mas é útil também por exemplificar através do humor um tratamento indelicado que é bem comum de acontecer.

Da mesma forma a geração anterior e a próxima são representadas pela sobrinha e pela avó do protagonista, ambas antenadas com respeito às liberdades que o mundo ganhou e prontas para dar lição de moral ao patriarca da família, este, sim, muito próximo de uma caricatura. Ele se torna o calcanhar de aquiles do projeto, pois o terceiro ato inevitavelmente terá que conter um desfecho satisfatório que sacrifica a essência desse personagem, necessário para criar a tensão inicial, mas que enfraquecerá o drama nos minutos finais, e nos lembra que tudo não passa de uma farsa.

O elenco se completa com o trio gay interpretados por Daniel Rocha, Felipe Abib e Rômulo Arantes Neto. Cada personagem desse trio é unico em tom, estilo, ritmo, personalidade e profundidade. O que é um marco no cinema nacional gay. Talvez no hétero também. Entre eles se sobressai Daniel Rocha, em um personagem inusitado. Rocha constrói um Mário que, diferente daqueles personagens que nos dão raiva por ele nunca tomar as decisões que precisa tomar, aqui não podemos nutrir nossas críticas porque… esse Mário é realmente convincente. Nós entendemos essa pessoa e o que ela representa no microcosmos de personalidades desse filme e sabemos de imediato que esta não é uma pessoa que vai resolver sua própria vida sozinho.

Por outro lado, nem seu namorado, Fernando. Interpretado por Felipe Adid, Fernando é possessivo e controlador um pouquinho acima do desejável para que os dois funcionem como um casal. Eles dão certo no palco. Enquanto um escreve o outro dirige. Porém, a vida não é só feita de palcos, e quando ambos descem para a realidade um impasse fica flutuando no ar. Eles precisam que alguém construa a voz da razão ou serão triturados pelo mundo lá fora.

Esse alguém é a personagem de Letícia Lima. Uma pessoa forte e empoderada sem ser vulgar. Um pouco chata quando necessário. E por “sorte” ela inspira em Mário uma paixão física e espiritual. Porém, o mais fascinante é que ambos sem Fernando se desequilibram. É aquele fogo de palha que logo se apaga. Só o ingênuo e sonhador Mário não percebe.

Como você pode ver, este é um filme com personagens encantadores que minimizam o roteiro maniqueísta. Quando o diretor Hsu Chien viu essa trupe em ação sabia que havia algo de especial. O que cada atriz e ator, dedicados em sua própria performance individual, eram incapazes de ver, Hsu vislumbrou em conjunto. E tirou o melhor de cada tomada. Cada sorriso, cada olhar, cada suspiro.

Quem Vai Ficar com Mário? com esse título de comédia dos anos 90 tomou o rumo de um conteúdo leve que faz jus aos tons de cores não tão exagerados quanto uma comédia gay nem tão sóbrios quanto filmes do extremo sul do país. Um arco-íris sóbrio ainda é um arco-íris.


“Quem Vai Ficar com Mário?” (Bra, 2021), escrito por Stela Freitas, Laura Malin e Rafael Campos Rocha, dirigido por Hsu Chien Hsin, com Felipe Abib, Amélia Bittencourt, Letícia Lima, Daniel Rocha, Rômulo Arantes Neto e Alice Borges.


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