Ponto Cego | Acerta em cheio em qualquer alvo que aponta


Afiado e preciso, Ponto Cego discute o racismo na contemporaneidade e a violência institucional direcionada aos negros nos Estados Unidos, tudo isso, de forma extremamente estilosa e dinâmica, encontrando também espaço para momentos eficientes de humor e para desenvolver a amizade entre seus dois personagens centrais. O que faz do longa algo praticamente obrigatório não apenas pelas temáticas que retrata de maneira complexa, mas também graças a suas qualidades técnicas e estéticas.

Collin (Daveed Diggs) está prestes a terminar a sua condicional — faltam apenas três dias para que ele volte a ser um homem livre. Comportando-se com extremo cuidado e esforçando-se para não ir na onda de seu melhor amigo Miles (Rafael Casal) e acabar quebrando as regras da condicional, Collin não tem nenhum minuto a desperdiçar se quiser chegar em casa antes do horário máximo permitido quando testemunha um crime terrível: um policial branco atira e mata um homem negro que fugia dele.

O assassinato abala Collin — também negro — profundamente e força-o a refletir de novas maneiras sobre o acontecimento que o levou à prisão, a cidade em que vive, a forma com que ele é enxergado na sociedade e até mesmo sua amizade com Miles, que é branco.

A dinâmica entre Collin e Miles mostra-se ainda mais interessante pelo fato de seus intérpretes, Daveed Diggs e Rafael Casal, também serem responsáveis por escrever o roteiro do longa dirigido por Carlos López Estrada, cineasta mexicano radicado nos Estados Unidos e que estreia aqui como diretor.

Diggs e Casal fazem de Collin e Miles personagens multifacetados que jamais são culpabilizados ou desculpados pelo longa, que recusa-se a reduzi-los a qualquer estereótipo. Assim, a violência cometida pelo protagonista não é apenas resultado de suas escolhas pessoais, pois há um contexto maior envolvido, assim como ela não existe somente por causa do racismo e da pobreza institucionalizados em seu bairro na cidade californiana de Oakland. Enquanto isso, Miles é o privilegiado (branco) inserido na minoria (negra) e que age, fala e se veste de forma parecida aos negros do local, o que acaba fazendo com que ele tenha mais liberdade naquele meio simplesmente por ser branco — ele nunca é culpabilizado por seus atos da mesma forma com que Collin é. Entretanto, é claro, isso não é resultado apenas de uma intenção consciente de absorver o que é do outro, mas da vivência naquele contexto que, afinal, também o formou enquanto indivíduo.

Assim, o relacionamento confortável e familiar entre os dois torna-se cada vez mais complicado conforme a trama avança, mas o carinho que um sente pelo outro é palpável — e isso estende-se para as suas respectivas famílias, já que eles são melhores amigos desde a infância. Collin e Miles são quem são hoje muito em parte graças um ao outro, e o roteiro de Diggs e Casal retrata isso muito bem.

O cuidado na construção dos personagens é tanto que nem mesmo o policial responsável pelo assassinato visto no começo do filme é retratado como um vilão unidimensional e, mesmo com pouco tempo de tela, Ashley (Jasmine Cephas Jones — os fãs de Hamilton: An American Musical vão adorar vê-la atuando ao lado de Daveed Diggs, seu colega no elenco original da peça) e Val (Janina Gavankar) conseguem ir além de interesses românticos descartáveis.

Ponto Cego ainda encontra tempo para falar de gentrificação, corporativismo e a cultura de startups de forma sagaz e tão divertida quanto crítica — esses elementos não apenas colorem o universo habitado pelos personagens, mas também são responsáveis por criar conflito, especialmente no terceiro ato.

Isso também acontece graças à inteligente condução de Carlos López Estrada, que já mostra-se seguro e estiloso em seu primeiro longa-metragem. Na sequência de abertura, por exemplo, o hip hop que marca presença forte na trilha sonora dá lugar ao primeiro ato de La Traviata, de Verdi, que embala planos apresentando a cidade de Oakland. Nada mais acertado — aqui, o rap surge como uma ópera, externalizando os sentimentos de Collin e, em uma cena-chave, sendo veículo para que ele possa expressar tudo o que vinha guardando e matutando desde o início do filme.

A direção caminha com talento entre os momentos mais quietos ou de pura tensão do longa com aqueles de pura energia, algo também absorvido com excelência pela montagem de Gabriel Fleming — que também acerta na decisão de alternar entre os planos no mesmo ritmo da trilha sonora, trazendo estilo e ritmo para a obra.

Dessa forma, Ponto Cego desenrola-se repleto de surpresas e pequenas genialidades que fazem com que o filme seja tanto um soco no estômago quanto uma reflexão crítica, estilosa e até mesmo muito divertida sobre seus temas e personagens. Sem jamais tomar caminhos fáceis, o longa mergulha no que quer dizer e acerta em cheio em alvo que aponta.


“Blindspotting” (EUA, 2018), escrito por Rafael Casal e Daveed Diggs, dirigido por Carlos López Estrada, com Daveed Diggs, Rafael Casal, Janina Gavankar, Jasmine Cephas Jones, Ethan Embry, Tisha Campbell-Martin, Utkarsh Ambudkar, Kevin Carroll e Ziggy Baitinger.


Trailer do Filme – Ponto Cego

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