Os Fantasmas de Ismael Filme

Os Fantasmas de Ismael | Uma viagem metalinguística


Este é mais um filme sobre o processo de criação. Mas ele é tão intenso que quase parece se deixar levar como uma auto-análise do seu criador. Eu disse quase, já que Os Fantasmas de Ismael é um trabalho que se mantém sob controle se você olhar de perto, mas para o leigo, esta é uma aventura muito, muito louca, que com um pouco de esperança irá te dar alguns insights sobre como somos manipulados todo o tempo nas artes cênicas e na literatura.

Porém, este não é um trabalho obsessivamente controlado pelo seu roteirista como Adaptação, de Charlie Kaufman; tampouco é o caos se transformando em filme por acaso. Ele vai caminhando através do equilíbrio entre o coerente e a insanidade, aos poucos nos dando a impressão de estar assistindo a um trabalho de ficção, quebrando eventualmente a quarta parede da maneira mais sutil possível. Ele não nega isso, pois este é o assunto do filme, mas não deixa escrachado, pois você terá que perceber isso nos detalhes, como lágrimas que começam a escorrer quando um personagem diz a outro que ele deveria estar chorando, ou nos movimentos de câmera grosseiros que lembram filmes de suspense como os da época de Hitchcock (e não é à toa que o Bernard Herrmann, colaborador de Hitchcock na maioria de seus filmes, consta nos créditos musicais). E, assim como o próprio Hitchcock, a maestria do filme reside em esconder suas pegadas, mesmo que o assunto do filme seja sobre as pegadas em si.

Ou seja, é obviamente sobre metalinguagem. O começo do filme é o começo de um filme sendo escrito e dirigido pelo seu protagonista, o fumante e bebedor compulsivo Ismael (Mathieu Amalric). Ele já carrega o gene do escritor clichê, mas ele desconfia também carregar o gene responsável pelos seus contínuos pesadelos, geralmente envolvendo a morte. Ele e seu sogro (László Szabó, quase sempre na penumbra, como um fantasma) parecem manter este drama em comum. O que faz todo sentido, pois sua esposa, Carlotta, desapareceu misteriosamente há mais de 20 anos e nunca mais deu notícia. Este é um clichê literário que adquire uma expressividade arrebatadora nas mãos de Marion Cotillard, que faz a garota crescida surgindo inexplicavelmente como um fantasma, e que acabará desencadeando a maior parte dos acontecimentos a partir de então.

Explicar o plot de Os Fantasmas de Ismael seria não apenas uma tarefa ingrata, como inútil, já que o filme não é sobre a história em si, mas como os detalhes da possível vida real do escritor/diretor e dos detalhes de si mesmo e das pessoas em sua vida acabam se mesclando nos personagens que ele cria para suas histórias. Aqui o mais emblemático é um rapaz que acaba virando espião de uma organização fictícia no último filme que Ismael está dirigindo, e que combina detalhes de sua namorada (que é astrofísica) e de sua esposa desaparecida (surgir sem um passado, mas com muita vivência para seu novo emprego). Note, por exemplo, como ele segue seu interesse amoroso da mesma forma com que Ismael se oferece para conhecer a casa da personagem de Gainsbourg, mesmo depois dela deixar claro não se sentir confortável com a proposta.

Os Fantasmas de Ismael Crítica

Se Mathieu Amalric e Marion Cotillard emplacam um casal que não existe mais, mas que parece inexplicavelmente ainda ter muito em comum, como a impulsividade de suas escolhas e a intensidade com que vivem, Charlotte Gainsbourg refaz a personagem periférica de Lars von Trier em Melancolia de uma maneira mais sóbria, mais auto-centrada, mas visivelmente afetada por Mathieu, com quem vive um relacionamento complicadíssimo depois que sua ex-mulher retorna das cinzas do passado. Porém, o triângulo amoroso que se forma (outro clichê) aos poucos parece ser justamente o combustível para que Ismael consiga produzir mais páginas de seu roteiro, o que vai se tornando cada vez mais claro conforme vamos ficando mais a par do processo criativo do sujeito.

Há referências para tudo quanto é lado sobre o cinema em geral e alguns trabalhos específicos, sobretudo de suspense. Porém, não é necessário conhecer nenhum deles, pois o filme os utiliza mais para a montagem de um universo ligeiramente exagerado que coordena duas ficções diferentes e que se cruzam nos detalhes de seus personagens. O paralelismo, apesar de desproporcional, funciona tão bem que somos levados a pensar sobre a narrativa ficcional da história principal por reflexo de acompanharmos um outro filme sendo produzido. E é justamente esse o exercício aqui proposto.

Os Fantasmas de Ismael é um filme em constante construção. Assim como sua história interna. Portanto, fica difícil percebermos qual é sua conclusão quando o filme termina. Por isso é tão importante para o espectador que ele entenda que o que está sendo discutido no filme não são suas histórias, fictícia ou não, mas o processo em si. Uma vez que isso fique claro, a viagem metalinguística se torna verdadeiramente original e fascinante. Principalmente se nos lembrarmos que o diretor (real) do filme está com tudo isso em seu controle.


“Les fantômes d’Ismaël” (Fra, 2017), escrito por Arnaud Desplechin, Julie Peyr e Léa Mysius, dirigido por Arnaud Desplechin, com Mathieu Amalric, Marion Cotillard, Charlotte Gainsbourg, Louis Garrel, Alba Rohrwacher.


Trailer – Os Fantasmas de Ismael

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2 Comentários. Deixe novo

  • Olá, Marcos. Muito obrigado, que bom que você entendeu também e pôde curtir o filme =)

  • Marcos Paulino
    06/05/2018 9:18

    Parabéns ao crítico Wanderley Coloni, que entendeu o filme, que trata do processo criativo e não propriamente da narrativa em si. Muito bom filme!

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