Os Dez Mandamentos

Assistir a Os Dez Mandamentos, espécie de remake da superprodução de Cecil B. de Mille (seja o de 23 ou o de 56) evoca sentimentos mistos. Se por um lado essa novela disfarçada de filme produzida pela Igreja/TV Record tem uma péssima qualidade em quase tudo que toca – semelhante ao cajado de Deus que espalha sete pragas pelo Egito – por outro o potencial dramático e épico que o livro/filme evocam equilibram o resultado final, que é capenga, mas é carregado nas costas por uma história milenar. Com um sentimento ainda tribal, a “inspiração divina” de antigamente hoje se revela como uma tentativa de controlar um povo através do amor incondicional aos deuses, como pregam quase todas as religiões do planeta, incluindo a judaica. Essa apela para a diferença de ter apenas um deus, o “único e verdadeiro” (e tenho certeza que quase 10 em 10 espectadores – cristãos – irão concordar).

Aliás, é fascinante perceber como esse sentimento de dependência é tão arraigado na espécie humana, tanto que o ato de se submeter ao desejo dos seus governantes existe até hoje, mesmo que disfarçado de desejo da maioria (democracia, estou olhando para você). Se houver apenas uma novidade nesse remake é tornar a comparação entre o esoterismo antigo e a civilização ocidental contemporânea tão explícita – ainda que de forma inconsciente. Vemos isso quando Moisés responde aos questionamentos lógicos de seu povo com “esta é a lei”, como se todas as leis fossem automaticamente sãs, se esquecendo que por gerações as leis do Egito consideravam os hebreus propriedade do faraó.

Mas voltando à novela: se na primeira metade fica evidente que os sofríveis efeitos visuais, a trilha sonora repetitiva e desprovida de significado, e um roteiro que quase faz um favor ao irregular elenco, em nunca exigir demais de seus atores, Os Dez Mandamentos consegue se reerguer em sua segunda metade, mas não como uma lição de fé (ou purificação da alma, como querem seus idealizadores) mas muito mais como uma propaganda anti-religião e até anti-estado, já que os argumentos contra a escravidão de homens por homens é a mesma escravidão de homens por uma entidade mágica (entidade essa criada por… homens).

Curioso é entender que boa parte dessa melhora do filme se deve ironicamente aos detalhes mais sutis da produção original, como o manto vermelho/azul de Moisés, a maneira como sua barba cresce, ou até a forma mágica de Deus escrever os mandamentos. O resultado facilmente se confunde entre plágio e homenagem, e fica difícil acreditar que tudo isso seja acidental. Não me lembro se a parábola da semente, introduzida pelo pai de Moisés se encontra no conteúdo original, mas por ser uma parábola acredito que sim. Uma pena, pois se fosse original, seria talvez o único detalhe que conseguiria enriquecer o tratamento brasileiro à dialética da religião.

Sem contar que o filme admite desde o começo contar uma história conhecidíssima ao mostrar os corpos dos soldados egípcios flutuando no fundo do Mar Vermelho, já revelando o final do grande clímax da história. Ou podemos analisar como uma tentativa de reforçar a comparação inicial que o filme faz com a decisão do faraó de matar todos os bebês hebreus, que são jogados às margens do Rio Nilo, e de onde o diretor captura rapidamente a situação semelhante dos bebês. Se for realmente isso, é brilhante. O problema é que fica difícil saber se é algo proposital ou não, já que a narrativa constantemente se perde em diálogos desinteressantes e inúteis, sem contar na péssima narração em flashback aliada a momentos-chave onde personagens principais proferem frases que parecem ditas por outra pessoa, tamanha é a falta de qualidade na mixagem de som, uma característica já conhecida do cinema nacional, mas que aqui atrapalha e muito.

Os Dez Mandamentos Filme

E, ainda assim, se torna um problema menor se comparado à maquiagem, figurinos e cenários do filme, que soam teatrais demais para serem críveis. Ou pior: “noveleiros”. Para ter uma percepção do que digo, imagine um ambiente poeirento como o deserto, onde quem tem água tem poder, e note como as fachadas do palácio são impecavelmente limpas, como se fossem novas ou retocadas por contra-regras antes das filmagens. Até os escravos hebreus possuem ferimentos particularmente bonitos demais se fossem desferidos por chicotes.

E, como já havia descrito, os efeitos dessa superprodução são sofríveis. As maquetes vistas de cima lembram jogos de computador. Porém, dos males o menor, e esses efeitos são usados com economia e rapidamente, quase não sendo possível uma comparação mais apurada. Sem contar que o clímax do filme, a travessia do Mar Vermelho, é desempenhado com uma certa competência, nem que seja na edição. Sim, os efeitos estragam tudo no momento final, inserindo corpos boiando artificialmente no “melhor” estilo Chapolim Colorado. E, assim como o filme original, o uso de matte painting (fundo pintado) torna tudo muito teatral e datado, o que não é um problema no original, mas é para um filme de 2015.

Porém, tudo termina com um ar de OK. Se não chega a ser um épico e superprodução brasileira, ao menos temos o consolo de aparentemente esta ser uma produção 100% custeada por dinheiro privado (incluindo as milhares de compras na pré-estréia que serviram não para trazer público – essas salas, aparentemente, estavam quase vazias). Resta aguardar pelo lançamento do livro (?) e talvez uma peça de teatro. Afinal de contas, os cenários já foram construídos, e o tom finalmente estará correto. Tudo pela conversão (de fiéis principalmente)..


idem (Bra, 2016), escrito por Vivian Oliveira, dirigido por Alexandre Avancini, com Paulo Gorgulho, Heitor Matinez, Marcela Barrozo, Milhem Cortaz, Eduardo Lago, Juliana Didone, Denise Del Vecchio, Guilherme Winter, Giselle Itié e Sérgio Marone


Trailer – Os Dez Mandamentos

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