O Diabo de Cada Dia | Um mosaico violento, suado e cheio de sotaque


O Diabo não está em cada dia. Talvez sejam os seres humanos que criem isso como desculpa pelos seus atos abomináveis e uma raiva que parece ditar as pessoas. O Diabo de Cada dia, adaptação do best-seller de Donald Ray Pollock, tenta acompanhar esses dias.

O filme é escrito e dirigido por Antonio Campos, que vem construindo uma carreira carregada por essa impressão de que a maldade não é uma característica que possa ser ignorada nos seus personagens. O nome brasileiro vem do pai, o jornalista Lucas Mendes.

Campos aposta então nesse filme com poucas amarras temporais e que acompanha as histórias desses personagens distantes que se cruzam em uma espécie de mosaico de violência, pecado, ambição e religião. Tudo pintado em um quadro meio sépia e granulado (oferecimento do diretor de fotografia Lol Crawley), com pinceladas daquele interior americano cheio de caipiras suados e onde a maldade parece ser uma característica comum ao topo da cadeia alimentar.

O filme começa acompanhando o veterano de guerra vivido por Bill Skarsgard, mas aos poucos vai cruzando com um monte de personagens vivendo naquele mesmo pedaço perdido dos Estados Unidos. Todos quase sem ligação, mas empurrando as histórias alheias para conclusões que seguem o mesmo rumo violento e brutal.

É isso que o filme de Antonio Campos busca, essa impressão de que não há como fugir desse fim sujo e distorcido. Que avança no tempo para acompanhar um pouco da história do filho daquele veterano, vivido por Tom Holland, mas que parece continuar refém do emaranho de decisões que o passado colocou à sua disposição. Arvin (Holland) parece não ter opção a não ser agir diante dessa teia, mesmo sem saber que faz parte dela.

O Diabo de Cada Dia ainda tem uma característica ainda mais forte, uma narração pesada que parece tirada diretamente do livro original. As palavras são do próprio Donald Ray Pollock, então é um pouco como escutar o próprio criador explicando sua criação com um afastamento onipotente que não poderia ser transformado em imagens. Os textos são poderosos e expandem a visão sobre certas cenas quase de modo divino. E por mais que isso soe como uma espécie de apelação narrativa e em certos momentos pareça estar lá apenas pela inércia de não conseguir mais larga-la, o resultado final funciona e deixa o filme ainda mais interessante.

Isso também não atrapalha muito graças ao interessante trabalho de montagem de Sofia Subercaseaux, que segura bem o vai e vem da trama não linear e picotada mantendo um ritmo ágil enquanto pula de personagens em personagens, com pouca preparação e muita vontade de contar essa história do modo mais claro possível.

Antonio Campos pega essas duas qualidades de seu filme e constrói uma história de sentimentos claros e cenas que nunca se escondem. Seus personagens agem de acordo com o necessário para que suas cenas sejam limpas, mesmo em meio ao visual cheio de personalidade e falta de sequência. Sua história passa por várias pessoas, mas nunca parece sair desse mundo e essas ligações, tanto visuais, quanto narrativas, vão ficando cada vez mais e mais claras. O que faz de O Diabo de Cada Dia uma experiência elegante, já que o resultado é realmente todo ligado de modo inteligente e empolgante, ainda que simples.

O outro lado que deixa O Diabo de Cada Dia ainda mais interessante é seu elenco repleto de gente jovem e já acostumada a se sobressair em seus trabalhos. Todo mundo ainda com uma oportunidade de valorizar seus personagens com aquele jeitão bem específico daquela parte dos Estados Unidos. Rude, um sotaque meio capenga sempre presente e uma impressão de que sempre estão vestindo uma roupa que não combina com seus personagens.  Sebastian Stan deixa de lado o Bucky do MCU e encara esse xerife Lee Bodecker, apertado, quase sem respirar, como se não o fizesse enquanto parece estar o tempo todo do lado de lá da lei. Jason Clarke, por sua vez, cria um personagem perigosamente real, decididamente alguém que faria você se arrepender de ter pego uma carona com ele no exato momento em que entra no carro.

Mas os dois maiores destaques surgem sob a cruz da igreja, os pastores Roy Laferty e Preston Teagardin, vividos por Harry Melling e Robert Pattinson. O primeiro é aquele mesmo que surgiu no começo dos anos 2000 em Harry Potter, mas que aos poucos vem criando essa carreira de papeis complicados e desafiadores. Muita gente deve esquecer dele em um segmento de A Balada de Buster Scruggs, mas agora, em O Diabos de Cada Dia, se fará ser lembrado. Seu personagem é rebuscado, exagerado e passa por uma transformação de maluco para mais maluco ainda, mas sempre com muito segurança e força.

Pattinson mantém a incrível qualidade de seus últimos trabalhos, seja quando está no papel principal, ou apenas em um ponta, como é esse caso. O ator cria um monstro crível em um trabalho corporal e de voz que vão da sutileza até uma brutalidade visual incrível. Seu Preston Teagardin é abominável. Uma criação de personagem extremamente eficiente e que demonstra mais uma vez o quanto Pattinson já pode ser considerado um dos atores mais interessantes de sua geração.

E essa brutalidade do pastor vivido por Pattinson é um pouco a mesma de O Diabo de Cada Dia. Um grupo de personagens vivendo esses contos de raiva e violência, decididamente um filme mais visceral do que muito espectador está acostumado, mas ainda assim uma história sofisticada em seu formato e que aposta na ideia de que uma troca de lugares no balcão de uma lanchonete pode ditar os destinos das vidas de muita gente, mas também pode fechar um ciclo com violência e brutalidade. E isso não é culpa do Diabo em cada dia, mas sim dos seres humanos e suas decisões que poderiam surpreender até o próprio.


“The Devil At All The Time” (EUA, 2020); Escrito por Paulo Campos e Antonio Campos, a partir do livro de Donald Ray Pollock; dirigido por Antonio Campos; com Robert Pattinson, Tom Holland, Bill Skarsgard, Sandy Russell, Riley Keough, Harry Melling, Sebastian Stan, Mia Wasikowska, Elisa Scanlen e Jason Clarke


Trailer do Filme: O Diabo de Cada Dia

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