Nina Wu | Retrato podre do cinema

*o filme faz parte da cobertura da 43° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


[dropcap]P[/dropcap]esado e melancólico, Nina Wu é tanto um retrato de toda a podridão presente na indústria cinematográfica quanto fruto dela. Afinal, apesar da empatia concedida à protagonista e da forma com que o diretor Midi Z nos apresenta ao ponto de vista de Nina Wu, é impossível ignorar também o quanto o “male gaze” (ou “olhar masculino”) se mostra presente.

Nina Wu (Ke-Xi Wu) já é famosa há algum tempo na internet, mas está prestes a estrelar seu primeiro filme. Trata-se, o diretor promete, de um papel como poucos; uma oportunidade incrível para uma artista taiwanesa interessada em se desafiar, como a própria Nina Wu. Não demora muito para que fique claro que se a “heroína” desse filme dentro do filme é o exemplo perfeito de protagonista feminina “forte” que os homens da indústria adoram: sempre sofrendo, sempre à mercê de um homem, sempre com um papel passivo na ação. E para arrancar uma performance à altura do que deseja, o diretor de Nina está disposto a torturá-la — não apenas psicologicamente.

A agressão masculina em nome da arte, e o quanto a indústria (e, até certo ponto, o espectador) aceita isso não é novidade nenhuma, mas algo cada vez mais discutido no mundo audiovisual — especialmente desde que o movimento #MeToo tomou força no final de 2017. Mas pouca coisa mudou de fato, não é mesmo? Nina Wu retrata muito bem isso, e Midi Z explora com excelência a falta de linearidade de seu longa para expor aos poucos o verdadeiro nível da crueldade desse que é o grande vilão do longa.

E essa falta de linearidade apenas reflete a gradual compreensão de Nina sobre tudo o que ocorreu com ela. Nesse sentido, Nina Wu é magistral na forma com que nos coloca na cabeça da protagonista – a magnífica edição de som, por exemplo, frequentemente insere sons de algo que veremos na cena seguinte no momento atual, como se Nina estivesse em um sonho em que uma coisa se sucede a outra sem lógica aparente. A protagonista segue sem rumo, sentindo sem compreender a fundo o peso de tudo pelo que passou e passa.

Mas, por mais que Midi Z exponha tudo o que há de podre na indústria taiwanesa de cinema, é inegável que ele, enquanto homem, se beneficia de tudo isso. E não há como se desvencilhar. Todo o sofrimento por que a Nina Wu personagem passa se assemelha com o que a Nina Wu atriz passa e, especialmente nas cenas envolvendo abuso sexual, o ponto de vista da obra deixa de ser o da protagonista para se tornar quase voyeurista. Além de estrelar o filme, Ke-Xi Wu também escreveu o roteiro ao lado de Midi Z e, nesse aspecto, o envolvimento da mulher no roteiro, mas não na direção, é escancarado.

De qualquer forma, Nina Wu é um retrato impactante da maldade e da misoginia nas quais a indústria do entretenimento se baseia e o quanto esse cenário se fortalece sob a noção de que “vale tudo em nome da arte”: vale humilhar a atriz se é para arrancar uma performance memorável dela; vale criar um ambiente hostil nas filmagens se é para fazer um filme incrível. E as “Ninas” — tanto as que conseguem continuar quanto as que desistem da arte — ainda ficam para trás.


“Juo Ren Mi Mi” (Taiwan, 2019), escrito por Midi Z e Ke-Xi Wu, dirigido por Midi Z, com Ke-Xi Wu, Vivian Sung, Kimi Hsia, Li-Ang Chang e Jen-Shuo Cheng.


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