A Nação Que Não Esperou Por Deus | O fim anunciado de um mundo


Tudo começou em 1999, quando Lúcia Murat escreveu, produziu e dirigiu o filme Brava Gente Brasileira, que retrata a conturbada relação entre portugueses e índios no século XVIII, justamente a tribo dos Cadiueus (há outros nomes, como Kadiweu, Kadivéus e por aí vai a valsa). Agora, em A Nação que Não Esperou por Deus, a mesma diretora retoma uma jornada de redescoberta de um povo que quinze anos depois de “descobrir” a eletricidade, as novelas e a religião dos brancos, agora corre o risco de perder o último de seus resquícios palpáveis em sua sociedade: a terra.

Essa tribo ficou conhecida em nossa história por ser guerreira e hábeis montadores de cavalos. Foram aliados na guerra do Brasil contra o Paraguai, e por isso mesmo tiveram suas terras oficialmente reconhecidas pela União. Curioso se torna quando descobrimos que na vida real, os Cadiueus sofrem forte assédio dos fazendeiros por suas terras, isso sem contar a parte delas onde a gente branca já se apossou, que exigiu da tribo movimentos conhecidos como “retomada”: o repovoamento de suas terras originais.

Iniciando com a explicação do título, uma lenda aparentemente adaptada depois da descoberta pelos índios de outros povos onde eles, os Cadiueus, resolveram não esperar pelas ferramentas que deus iria distribuir entre os povos, preferindo herdar as terras que tudo lhe dão, tudo isso se torna irônico nos dias de hoje, com os índios se convertendo à religião evangélica. E é a religião a que mais escancara essa realidade mista em que eles vivem. O seu culto é adaptado, com construções em português suportando frases nativas. As etnias estão misturadas, e seus filhos, brancos e falantes do idioma nativo, apesar de mal vistos, representam com perfeição a evolução da tribo desde sua representante mais antiga. Esta ganha uma curta sequência: uma senhora de olhar profundo e reflexivo, um tanto melancólico, vestindo um gorro onde se lê “Brasil”, sendo levada por um representante urbanoide através de plantas que se mesclam com o cimento de um jardim por dentro de uma pequena porta escura. E mesmo curta, essa parece ser a imagem que melhor representa todas as contradições integradas em um povo que luta por seus direitos por uma cultura que obviamente nunca mais será a mesma.

A questão dos Cadiueus é tão díspare em comparação com as tribos da reserva Xingu que seu início de mostra conturbado, difícil de raciocinar em cima, e o filme também comete seus pecadilhos mais nessa parte, ao não suportar um significado palpável que torne as passagens em corte brusco mais palatáveis (talvez uma revisita conserte isso para o espectador, mas não para o filme). E o que são aqueles índios de calça jeans e tênis? Seus crânios de mandíbulas longas e os sulcos das faces mais velhas revelam sua origem, mas o discurso político esquerdista e os conflitos de propriedade com fazendeiros também revelam que essa briga já foi perdida. Eles podem ter esperança, mas nós, homens brancos brasileiros, já sabemos que o desfecho já foi definido gerações atrás, e não há qualquer expectativa de mudança, não importa que agora estejam dispostos a esperar pelo deus evangélico. Ele só atende as preces do que estão no poder.

Como Lúcia Murat parafraseia o antropologista Lévi-Strauss, ela sente ser uma das últimas a testemunhas a existência dessa fabulosa sociedade. O “arrebatamento” dos evangélicos parece ter ocorrido ao contrário para eles, que viviam no paraíso, e agora estão sob as leis escusas de uma civilização inerentemente exploratória e devastadora.

Mesclando imagens atuais com arquivos bem mais antigos — uma das melhores ideias e fruto das melhores sequências — como quando é descrita uma das ações de “retomadas” das terras indígenas em posse de fazendeiros, o filme nos faz viajar pelo tempo e pela imaginação, já que os Cadiueus são meros personagens em Brava Gente Brasileira, mas estão muito mais próximos de sua alma autêntica do que hoje, na vida real, em um documentário. Mais curioso ainda é constatar que as imagens antigas, pela pouca qualidade e definição, lembram muito mais um documentário do que as imagens atuais, em uma inversão que apenas beneficia a narrativa.

E como se não bastasse, seu desfecho, já nos letreiros finais, flerta fortemente com outro trabalho inestimável dos documentaristas tupiniquins: muitos enxergarão Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho, reproduzido em uma nova embalagem. Não é tão impactante quando o longa de Coutinho, mas o conteúdo está ali, para todos poderem ver. Apenas isso já serviria como um bom motivo para todos assistirem esse teatro da vida real.


A Nação que Não Esperou por Deus (Bra, 2016), escrito por Lucia Murat, dirigido por Rodrigo Hinrichsen e Lúcia Murat


Trailer – A Nação que Não Esperou por Deus

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