Legalidade | “Avante brasileiros de pé, Unidos pela liberdade”


[dropcap]A[/dropcap]ssistir Legalidade gera sentimentos conflitantes sobre este filme que tenta unir o estilo novelesco com drama político e vai além, abordando outros temas, como filme de espionagem e revisionismo histórico. Com todas essas pretensões fica fácil descobrir por que o resultado deu errado, mas não se trata de um filme completamente descartável, pois há momentos que nos surpreendem por serem tão necessários à filmografia brasileira atual quanto teriam sido para a democracia brasileira aqueles conturbados 14 dias de sucessão presidencial de 1961.

Antes, vamos aos elogios: se há algo que se mantém firme e forte nos melhores momentos do filme de Zeca Brito é o seu design de som. Trabalhado por uma equipe encabeçada por nada menos que cinco pessoas, ele une uma evocação ao patriotismo brasileiro, restaurando um hino de protesto em formato de trilha sonora, com nossas raízes guerreiras, latinas ou indígenas, na busca por uma identidade nacional. É pelo som que podemos perceber que há um ótimo filme querendo surgir.

Porém, o pano de fundo desta história escolhe os personagens principais errados, manipulando nosso foco para uma relação de amor e traição entre uma jornalista obscura dos EUA e dois irmãos envolvidos no processo democrático de uma forma ou de outra, e não se tem muita ideia de como eles foram parar ali. Ao mesmo tempo, a tentativa de unir passado e presente pelo revisionismo histórico se trata de um rascunho completo, quando percebemos que a filha da tal jornalista, ao investigar o desaparecimento da mãe, consulta jornais arquivados da época e sublinha os papéis originais com caneta.

E na mesma medida que sabemos este ser um trabalho pedestre nossa percepção muda quando vemos como o roteiro consegue adaptar e articular de maneira exemplar os discursos de Leonel Brizola naquele momento histórico, ditos com uma dicção enfática e autêntica pelo ator Leonardo Machado, e que nos remete àquela época graças, novamente, ao design de som, que ao migrar sua voz ao vivo para as rádios faz ouvir uma voz e uma cadência muito mais próximas do que seria o verdadeiro discurso (não é; o texto é simplificado).

Todos deveriam saber desse momento na história brasileira, mas infelizmente o sistema educacional é o reflexo perfeito da decadência atual da sociedade. Mas vamos ao resumo: candidato meio populista, meio conservador, Jânio Quadros é eleito para substituir JK em 1961, mas em menos de um ano renuncia, dizendo estar agindo sob forte pressão de “forças ocultas” em um clima político instável, gerado pelas ameaças de influências externa tanto da CIA quanto dos movimento populistas no continente financiados pela Rússia comunista. No momento da sucessão para o vice de Jânio, o pouco expressivo João Goulart (o “Jango”), ele se encontra em visita à República Popular da China, o que não facilita em nada a aceitação dessa sucessão por alguma camadas de militares, alinhados aos interesses americanos.

É nessa atmosfera incerta que se passa o filme, e a maior parte do tempo o cenário é Porto Alegre, sede do governador do estado Leonel Brizola, e cunhado de Jango, que tenta articular o devido processo legal previsto na Constituição do país: a troca de poder entre o presidente e seu vice. É em sua dificuldade política e nas manifestações populares que reside a alma de um filme que eu pagaria pra ver de camarote, não fosse o fato de que para acompanharmos esta História tenhamos que seguir de carona pelo arco chinfrim da personagem interpretada por Cléo Pires.

Com o nome artístico resumido agora para “Cleo”, a atriz principal do filme carrega uma popularidade que embora possa promover o filme prejudica o trabalho de Zeca Brito, pois torna a importância da personagem de “Cleo” desproporcional ao momento histórico retratado. E principalmente, que se perde facilmente quando tenta também de maneira ambiciosa unir o revisionismo histórico dos anos 2000, quando documentos confidenciais do governo brasileiro da época do regime militar foram liberados para consulta. Ainda de quebra há um romance completamente aleatório entre ela e dois irmãos, um antropólogo e um jornalista, em uma tentativa atrapalhada de assim evocar a personalidade de Carlos Lacerda, influente jornalista desta época histórica.

Claramente influenciado por trabalhos de gênero, Legalidade empalidece por causa de seus personagens estereotipados que não acrescentam em nada à História que está tentando ser resgatada para a memória dos brasileiros. Legalidade fica pior ainda quando insiste em mostrar cenas de sexo deste triângulo amoroso completamente disparatado, pois nos faz lembrar de momentos não tão gloriosos da filmografia nacional, onde a nudez feminina era usada como chamariz de bilheteria em vez de conter algum significado na trama.

Enquanto isso, nos momentos mais tensos do drama político, Zeca Brito assume uma ideia arriscada que tenta resolver tanto problemas de orçamento quanto de engajamento emocional: misturar cenas feitas para o filme com cenas gravadas na época, em preto e branco. E funciona, mais uma vez, graças à maravilhosa experiência sonora do filme, que transforma o “Hino da Legalidade”, criado na época para a campanha da sucessão, em um personagem oculto: o patriotismo.

Há virtudes no roteiro, também, que adapta o realismo histórico ao alterar um detalhe da letra do hino, trocando “lealdade” para “legalidade”. Há pequenas adaptações da história para a ficção que valem a pena, e essa é uma delas. Ao mesmo tempo, o trabalho instrumental do hino no filme contraria uma tendência moribunda do design de som no cinema atual, que possui cada vez menos personalidade. O hino aqui vira um tema musical grandioso, que não enjoa ao ser ouvido, e engrandece os momentos que merecem ser assistidos.

Legalidade pode não ser um ótimo filme. Ele pode até não ser um filme muito bom. Porém, nele residem alguns dos momentos mais acertados no cinema nacional dos últimos anos. E pertinentes, se formos pensar na discussão sobre a própria legalidade das últimas ações que têm se configurado no Planalto em Brasília. Ele tem “Cleo”, romance e espionagem como chamariz de público, e uma mensagem que vale a pena ser divulgada. Infelizmente, a lembrança do filme vai embora rapidamente, logo ao terminar de assisti-lo. A única coisa que fica é a melodia acertadíssima do “Hino da Legalidade”, que faz você pensar em prioridades para o cinema nacional.


“Legalidade” (Bra, 2019), escrito por Zeca Brito e Leo Garcia, dirigido por Zeca Brito, com Leonardo Machado, Cleo, Fernando Alves Pinto, José Henrique Ligabue, Letícia Sabatella.


Trailer do Filme – Legalidade

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