Heleno | Uma homenagem a altura de um mito


[dropcap]N[/dropcap]ão deixa de ser curioso que o cinema nacional, principalmente depois da chamada retomada, beba tão pouco na paixão maior de todo brasileiro: o futebol. E, talvez, com o sensível e pouco usual Heleno esse panorama possa mudar.

Nele, o diretor José Henrique Fonseca (do ótimo O Homem do Ano) conta a história dessa lenda do futebol brasileiro, Heleno de Freitas (Rodrigo Santoro), ídolo do botafogo nos anos 40 e que acabou sua vida de modo trágico em uma instituição para doentes mentais. Para muitos, Heleno foi o primeiro “marrento” que o futebol nacional viu nascer, para o diretor, talvez uma personalidade tão apaixonante que não poderia ser ignorada.

Nesse caminho, José Henrique Freitas parte dessa figura esfacelada, destruída e dolorida e não a esconde para o espectador, olhando a parede de recortes em seus últimos dias de vida enquanto parece lembrar-se dos gloriosos momentos em que Heleno de Freitas reinava soberano não só no futebol, mas nas noites cariocas. Freitas traça então esse herói trágico, que, bem verdade, nem ao menos parece entender o que esses pensamentos fragmentados querem realmente dizer, mas para o espectador é um convite para acompanha-lo nesse caminho tão doloroso.

Corajoso na hora de carregar seu publico para esse lado onde ele nunca conseguirá se ver livre da figura fantasmagórica desses últimos dias, Heleno , por outro lado, talvez acabe se aprofundando pouco nessas razões, possivelmente dando demasiada importância para seu lado “mulherengo” e optando por deixar um pouco de lado, e sem força narrativa, toda doença em si. Mesmo que logo de cara o personagem já fique sabendo do problema, o espectador mais observador vai ficar inquieto com o quanto ela pouco influencia as ações do jogador, assim como nem esbarra em seu rendimento prejudicado (ou não) dentro de campo (e dos quartos e bares).

Entretanto, esse lado frágil do roteiro escrito pelo próprio diretor em parceria com Felipe Bragança e com o argentino Fernando Castets (responsável por escrever filme como O Filha da Noiva e O Clube da Lua) parece não incomodar, já que sobre cuidado na construção desse personagem. Não só em termos narrativos, mas estéticos e na extraordinária composição de Rodrigo Santoro, sem dúvida nenhuma o melhor do filme.Heleno

Em termos narrativos, Heleno se move através desses fragmentos que vem e vão no tempo, sempre tentando ao máximo rimar essas idas e vindas, senão com ferramentas simples, como uma olhada ao espelho, com momentos muito mais corajosos onde se vê traçar pontos importantes do personagem por meio desses dois espaços de tempo. Sua total frustração pela perda da seleção brasileira na Copa do Mundo de 50 trata desse amor que Heleno de Freitas tinha com o esporte, desses sonhos que, pouco a pouco mais se desmanchando até que seu maior objetivo deixe de ser jogar no maracanã e se torne entrar em um campo de areia de pé, e, por que não, conseguir uma segunda chance de acertas um fatídico pênalti em uma final de campeonato.

De modo cuidadoso e bem montado, Heleno  não deixa que seu espectador se sinta solto mesmo nessa trama não linear. E isso mantém qualquer um satisfeito dentro do cinema.

Já do lado da câmera, ou melhor, por trás dela, José Henrique Freitas parece estar em busca desse meio termo entre contar essa história e ter em mãos um filme visualmente rebuscado, o que dá uma profundidade imensa à experiência final. Heleno  pode parecer comum, mas nunca se deixa ser medíocre, já que se sente confortável embaçado pela chuva no vidro do carro, pois o próprio Heleno de Freitas não pode ser considerado uma figura comum e fácil de ser desvendada, enxergada. E ainda que quase sempre ocupando o primeiro plano das composições do filme, mesmo que seja apenas para atrapalhar a visão geral da cena (e ninguém esquecer que tudo ali acontece em sua função), Freitas faz sempre questão de encarar seu protagonista, seja em todo seu sucesso ou em sua doença terminal.

E o diretor parece respeitar (e por que não, amar) tanto seu personagem, que não consegue ter coragem de encará-lo em sua fragilidade, nos momentos em que precisa descer daquele pedestal que ele próprio acha que todos deveriam colocá-lo, para conversar, justamente, com as únicas figuras que lhe diminuem, sua mãe, pelo telefone e sua ex-esposa, essa já no final de seus dias. Mais ainda, de jeito acertado, Freitas não o diminui diante dessas figuras, como o faz diante da cidade, em um angula baixo, quase colado ao chão (ou perdido diante do Maracanã), mas sim, o faz sem permitir que seu espectador perceba sua fragilidade.Heleno

Diante de todas essas nuances, a escolha de uma fotografia em preto e branco cai mais ainda como uma luva, já que, além de homenagear as cores do Botafogo (já que como o próprio Heleno corrige em certo ponto do filme, “não é jogador de futebol, mas do Botafogo”), mantém esse tom de inversão, de oposição, como se ambos os lados fossem tão longe um do outro como o preto e o branco são entre si. É lógico que a opção da “ausência de cores” também se dá, esteticamente para representar essa época (e por que não para aproveitar a eterna beleza noir da fumaça de um cigarro de dissipando pelo ar), mas, mais do que isso, essa opção parece participar da enorme composição de personagem que culmina com o trabalho sensacional de Rodrigo Santoro.

Sabendo se aproveitar de toda essa preocupação com o personagem, para Santoro sobra compor essas duas personas dentro de um mesmo personagem (aliado ai com o trabalho irretocável da maquiagem de Martin Macia Trujillo). De um lado esse galã que parece se destacar em qualquer multidão, sem nunca se desvencilhar de um ritmo de falar criando como se para conquistar todos a sua volta, do outro, um arremedo magro e triste, com os ombros empurrados para baixo pelo peso da doença e um olhar perdido em algum pensamento desconexo. Santoro ainda trabalha em cima dessa “força da natureza” que explode diante da paixão pelo futebol e cochicha caricias ao pé dos ouvidos das “cinturinhas” que tanto preza, assim como balbucia palavras embaladas pela doença no final de sua vida.

Com a ajuda da estrutura do filme, que sempre faz questão de colocar “cara a cara” esses dois momentos do personagem, Santoro acaba fazendo, talvez, seu maior trabalho no cinema, já que, muito mais que em seu Bicho de Sete Cabeças, tem mais tempo em tela para trabalhar o personagem sadio (seu travesti em Carandiru funcionava muito mais diante da caricatura do que diante de seu trabalho).

Heleno então é uma experiência afinada e tremendamente emocionante, um exemplo claro de que, se o futebol não é tão lembrado assim no cinema, é por que os cineastas nacionais às vezes se esquecem de que, além da bola, e do gol, o futebol é formado por pessoas, e suas histórias estão ai para serem contadas.


Heleno (Bra, 2012) escrito por José Henrique Fonseca, Felipe Bragança e Fernando Castets , dirigido por Rodrigo Santoro, Angie Cepeda, Alinne Moraes, Othon Bastos e Erom Cordeiro.


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