Expresso do Destino | Indo para o mesmo lugar de sempre


Expresso do Destino começa meio estranho. Os diálogos são fracos. Um misto entre realismo e amadorismo. Este é o cinema independente do século 21, onde tudo já foi tentado e a mínima diferença se destaca e ganha prêmios.

Mas sabemos que é cinema atual porque as cenas com a câmera na mão são de vídeo-clipe e a vida nunca foi tão próxima disso. Este casal improvável ouve músicas pelo Youtube e conversa durante uma viagem de trem de 17 horas, onde irão descobrir que apesar de estarem indo para o mesmo casamento a contragosto, possuem mais em comum do que imaginam. Sim, é clichê, mas o diretor Ozan Açiktan disfarça bem suas intenções com tanto carinho em sua decupagem que torna o clima aparentemente claustrofóbico de um trem em um ambiente relaxante que inspira a reflexão sobre a vida.

Neste filme, assim como a vida, o trajeto é mais importante que o destino. Quando o clímax chega é como se o espectador já viesse pedindo por ele há um tempo, pois é a conclusão natural de tudo o que essas duas pessoas viveram até agora. E isso prova ser esta a direção absoluta.

Diretor do filme e maquinista do trem seguem de mãos dadas. Sempre é poética e inspiradora uma história de reflexão, mas se ela passar em um trem em movimento, ganha pontos pela metáfora batida sobre a vida, que a cada década que é usada adquire coloração diferente e nunca perde o charme.

Sobre o roteiro, as dúvidas são muitas. Como um advogado gosta de poesia? Ele sofre desde os 14 anos de idade, quando teve um infarto e acionou o alerta interno de sua família, preocupados em quando surgirá o segundo ataque. Esta é no fundo mais uma metáfora, sobre o mal que todos sofremos, de estarmos preocupados a vida toda se o que estamos fazendo é certo ou errado, se estamos machucando, ou vamos machucar. As pessoas boas, claro, pois as más estão indo casar.

A participação de Metin Akdülger como este advogado, Ali, é confusa e apagada, mas nós percebemos sua rasa e confusa intenção em se dirigir para o casamento, ainda que ele e suas falas não nos ajudem a entender essa quase pessoa. Não há uma personalidade natural por trás dessa pessoa que parece ter tudo sob controle, exceto seu emocional. Apenas acenamos a cabeça e seguimos viagem, com nossa pulga cinematográfica atrás da orelha.

Agora, sobre um advogado gostar de poesia, pensando como roteirista, tem seu sentido funcional: a moça precisa se afeiçoar ao rapaz de alguma forma. Talvez seja essa bagunça que vira um ser humano que não sabe mais viver depois de levar o fora da ex, que está prestes a se casar. As pessoas reagem de maneira diversa à ruína emocional. Alguns fazem limonada dos limões, mas a maioria quer mesmo é se afogar na vodca.

Psicologicamente o roteiro tem seus motivos, mas a forma como ele conduz nossas expectativas não está à altura do maquinista deste trem. Afinal de contas, essas duas pessoas já se feriram a ponto de desistir de tudo isso. Não há pretensões no começo da interação. Apenas mágoas que surgem à superfície até na conversa entre dois estranhos. O que dirá quando descobrirem que não são tão estranhos assim.

Não há muita personalidade, mas na vida real ninguém é mesmo assim especial como nos filmes. E isso traz um realismo bom, não forjado. Ou quase. O roteiro não consegue equilibrar falas ruins, “improvisadas”, com o que pessoas da vida real falariam. Ele não é completamente honesto, mas, pensando na vida real, quem de fato é. Existe show bizz misturado em todo trabalho independente que precisa se vender, o que é uma lástima para a torcida dos cinéfilos que enxergam no cinema pequeno a arte que tanto falta em Hollywood.

Os diálogos não são espertos de forma sobrenatural como na “Trilogia do Amanhecer” de Richard Linklater, com o casal Ethan Hawke e Julie Delpy, mas também não são reais e tocantes (no sentido dramático) como em Seguindo o Coração, um trabalho indiano que mostra como um relacionamento abusivo é escancarado frente às câmeras. Expresso do Destino fica no meio termo, ainda competente, mas se entrega menos do que poderia. Deve haver uma relação ótima entre negócios e arte, e este filme não encontra esse tom. Encontra apenas o bom, que já está de bom tamanho para os fãs de indies medíocres. Aplaudirão em algum momento em suas mentes, mas haverá vergonha de aplaudir em público.

E, fora sua qualidade narrativa virtuosa, sempre há essa menina, linda e verdadeira. Leyla, a personagem de Dilan Çiçek Deniz, está perdida de fato. Espontânea sem ser exagerada. Diferente dele, ela mantém uma personalidade que conseguimos descrever para outras pessoas que quiserem saber sobre o filme. Se trata de uma mulher sem os anseios do tradicionalismo do Oriente Médio, mas vive uma tempestade interna de emoções que ela resolve abraçar em vez de máscaras.

Não é possível descrever completamente Leyla, claro, pois são apenas dezessete horas em um trem, e ela é mais complexa do que isso (ou pelo menos sugere muito bem). Çiçek entendeu a proposta, suas falas a beneficiam, mas ao mesmo tempo ela consegue dizê-las na maioria das vezes com autenticidade. Ninguém pode negar que são suas as falas, dessa menina que já passou mais tempo e se dedicou mais em um relacionamento, seis anos, e já superou. Ela é mais madura. Porém, até pessoas maduras merecem ganhar novas experiências. E lá está ela, disposta a vivenciar o casamento do seu ex que dizia que casamento não era para ele. Dói, mas quem disse que é possível evoluir, crescer e amadurecer sem dor?

Falando agora da estética narrativa de Expresso do Destino, a divisão em partes incomoda por diminuir o ritmo do longa e o cortar em episódios que não existem. É mais um cacoete de usar uma música e uma passagem para a pausa reflexiva, mas depois de umas oito partes aprendemos que é assim que vemos a vida e os nossos episódios internos. Nós realmente não dividimos nossa vida em “a hora do chá”, “o momento impróprio”, etc? A diferença é que geralmente há um título em algum lugar de nossas cabeças caóticas.

A divisão em partes numeradas do filme soa automático e distante. Foi uma decisão funcional, mas é impessoal e pertence a outro filme. É a perda do controle do realismo embutido no filme em prol de algo mais palatável ao grande público.

E esta é a grande briga interna deste filme que sonha em ser um símbolo de nossos tempos de vídeo-clipe no Youtube e relacionamentos-relâmpago, onde seis anos parece uma eternidade, mas não consegue se desvencilhar completamente do projeto comercial que o torna possível de ser realizado. É a vida real, dentro e fora dos estúdios. E como reflexo de nossos irônicos tempos, não é nada romântico, apesar de desejarmos ardentemente que seja. Infelizmente pegamos o trem errado.


“Yarina Tel Bilet” (Tur, 2020); escrito por Drazen Kuljanin e Faruk Ozerten; dirigido por Ozan Açiktan; com Metin Akdülger, Dilan Çiçek Deniz e Tevfik Kartal.


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