Eu Não Sou Seu Negro Filme

Eu Não Sou Seu Negro | Documentário mostra o quanto ainda estamos longe de qualquer igualdade

Eu Não Sou Seu Negro, indicado ao Oscar de melhor documentário, coloca de maneira brilhante, apaixonada e lúcida a questão do afrodescendente na cultura norte-americana. Com a narração intensa e cheia de ritmo do texto poeticamente filosófico de James Baldwin, acompanhamos colagens inspiradas da história: depoimentos, fotos, filmes, entrevistas e notícias que se entrecruzam em uma miscelânea que, pode-se dizer, mimetiza a maioria dos discursos emotivos e efusivos da comunidade negra americana no último século.

Não sabemos muito a respeito do autor, mas ele se constrói junto da própria história que pretende contar. Baseado no romance inacabado de James Baldwin, o filme se suporta na visão de três líderes completamente distintos do movimento negro, cada um com estratégias diferentes de como a questão racial deveria ser resolvida: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. De uma maneira coerente do começo ao fim, este filme é uma mensagem atemporal sobre negros para a sociedade como um todo, em um pedido de ajuda e de alerta para os tempos sombrios que parecem, inevitavelmente, se repetir em um mundo que não dá sinais de resolver suas diferenças.

A narração de Samuel L. Jackson está além do necessário. Ele toma as rédeas de um personagem/narrador que protagoniza e participa de cada momento ao mesmo tempo que parece retornar ao todo contemplativo mais surpreendido, embora nunca desanimado. Os grandes baques pelos quais ele passou parecem ter servido como uma espécie de combustível em sua formação, como inspiração dos maravilhosos insights que acompanhamos.

Retornando ao mesmo tema várias vezes, os títulos dos episódios do filme se misturam, pois não estamos acompanhando algo cronológico, temporal ou ideologicamente. Não há informação sendo passada. Este é um hino de resistência e conscientização, do passado e do presente. L. Jackson cria esse personagem que atravessa o tempo de maneira tão completa, que parece ser o próprio criador de seu destino, uma ironia em um filme que trata sobre as mazelas da exploração humana de humanos, ao mesmo tempo que questiona com muita propriedade o que é essa tal de humanidade que consegue produzir e catalogar imagens tão fortes de violência bestial.

O texto de Baldwin, claro, conciso, e cheio de reflexões atemporais, colabora imensamente com isso. Cadenciado em frases de efeito – que realmente fazem efeito – cria momentos memoráveis de reverberar em nossa mente tempos depois de ouvi-lo. Me lembro particularmente de uma: “Há desafios que encontramos que não podem ser mudados, mas toda mudança antes precisa ser desafiada”. O filme nos presenteia a cada momento com o texto de um autor extremamente competente com as palavras, usando-as de forma econômica, mas também construindo expressões e sentimentos através apenas da colocação de um ou outro detalhe. Ouvindo a narrativa é possível desejar ler o romance de onde saem essas palavras. Nunca um roteiro conseguiria ser tão poderoso se não fosse a fonte de onde ele bebe.

E, por falar em inacabado, este é um filme pela metade. Ou talvez apenas um terço. Ele refaz de maneira inquestionável um apelo emotivo pela não-segregação, física e ideológica. Ele se deslumbra e se questiona pelas possíveis causas desse pensamento, e arrisca responder. Porém, nunca chega tão longe. Este é um filme tão inacabado quanto a história americana, que mesmo tendo seu primeiro presidente negro ainda parece longe de representar uma nação unida pela suas diferenças, e não apesar delas. Suas raízes, de acordo com o narrador, parecem se situar muitos séculos atrás, em um processo que se assemelha a uma cadeia de usos indiscriminados da força, como ele bem coloca sobre a história dos colonos e dos índios, os primeiros a sofrerem esse efeito em solo americano.

Eu Não Sou Seu Negro Crítica

O uso do som parece ocasional, mas possui momentos poderosos o suficiente para serem lembrados pela ausência. As cenas e acontecimentos são tão fortes que qualquer música melosa ou triste seria menos impactante. Tome como exemplo quando é anunciada a morte da menina que ficou famosa ao ser a primeira a frequentar uma escola de brancos, autorizada por lei em um clima de segregação onde as pessoas estavam longe da evolução moral que passamos nas próximas décadas. Como o próprio filme descreve, a notícia “é um estrondo”, e para nós mais ainda, já que vemos a notícia estampada em um silêncio absoluto, sepulcral. Uma decisão de gênio.

Ao mesmo tempo, a montagem sabe criar momentos poderosos através colagens poderosas. Não se trata de apenas enumerar os grandes momentos gravados da história, mas usá-los como uma forma de contextualizar, de tornar o passado um presente vibrante e passível de mudanças. Há movimento na edição do filme que consegue tornar uma foto de No Tempo das Diligências o próprio movimento em si. Há um corte preciso em um futuro conflito entre manifestantes e a polícia cujo vídeo se torna desnecessário. Estamos ouvindo um homem com palavras fortes e testemunhando fotos famosas sob outro prisma.

O filme tenta a todo momento trazer o presente – o movimento “Black Lives Matter” de 2014 – para mostrar que a história somos nós, e ela ai da está sendo escrita. Ajuda muito os momentos atuais, filmados com qualidade e com luzes vibrantes que nos lembram que é aqui e agora. Vemos Nova Iorque, vemos Times Square. Mas ouvimos o autor narrar quando tinha que sair separado de sua namorada branca para ela se sentir mais segura do que se estivesse com ele, no mesmo metrô. Mais do que melancolia e tristeza, a necessidade maior do filme é avisar a todos de que devemos estar sempre alertas para a volta de tempos sombrios.

Toda essa viagem extra-sensorial que o filme proporciona são mecanismos extremamente habilidosos usados pelo cineasta Raoul Peck para trazer o passado diante de nossos olhos. Há um quê de documentário de escola, mas que todos os filmes que pudessem passar na escola fossem assim. Isso até nos faz pensar se hoje isso seria possível.


“I Am Not Your Negro” (Fra/EUA, 2016), escrito por James Baldwin, Raoul Peck, dirigido por Raoul Peck, com Samuel L. Jackson, James Baldwin, Dick Cavett


Trailer – Eu Não Sou Seu Negro

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