Estou Pensando em Acabar com Tudo | Não precisa ser desvendado


Há algo de estranho em Estou Pensando em Acabar com Tudo.  O filme é o quarto trabalho de Charlie Kaufman na direção depois de ficar mundialmente conhecido por seus roteiros em Quero Ser John Malkovich, Adaptação e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. Portanto, é fácil imaginar que vá existir algo de estranho em Estou Pensando em Acabar com tudo.

Mas, diferentemente de seus outros três filmes (Sinédoque, Nova York, “How and Why” e Anomalisa), esse é baseado em um livro homônimo e escrito por Iain Reid. Mas as respostas do filme não estão nas páginas do Best Seller, por mais que ele sirva para ajudar quem quiser encontrar seus detalhes no filme ou casar a conclusão de Reid no filme de Kauffman, mas isso ninguém vai encontrar. Ou melhor, está lá, mas o diretor não parece preocupado em chegar no mesmo lugar, se chega, é porque chega em muitos outros lugares também. Assim como não chega em nenhum.

Desvendar Estou Pensando em Acabar com Tudo passa então pela impressão de que Kaufman não quer ser entendido. Talvez dê algumas dicas e símbolos, mas está, obviamente, mais preocupado em criar essa experiência sensorial e maluca onde o significado não parece ser o principal objetivo.

Há pelo menos alguma coisa a ser acompanhada, já que o filme gira em torno dessa jovem mulher (Jessi Buckley), que parte em uma viagem de carro com seu namorado, Jake (Jesse Plemons). Enquanto o espectador acompanha os pensamentos dessa personagem, parece que algo deles escorre para o mundo e chama a atenção do namorado, mas isso é só um detalhe, como todo o resto. Aparentemente, por mais que ela goste dele, talvez seja a hora de acabar com tudo.

A história continua depois de uma grande conversa no carro enquanto uma paisagem gélida passa por fora da janela. A poesia dela, seu nome, sua profissão, tudo parece não fazer diferença, já que irá mudar quanto mais longe chega nessa história surreal. O que está acontecendo? Será que importa?

O casal chega à casa dos pais do namorado, vividos por Toni Collette e David Thewlis e eles tem a oportunidade de fazerem um daqueles trabalhos enigmáticos onde tudo se torna uma possibilidade. Suas personalidades mudam, seus jeitos passeiam pelos diálogos como se fossem pessoas diferentes. Passado, presente e futuro caminham por aquela casa em meio a uma nevasca como se a protagonista estivesse presa em um pesadelo.

Essa dinâmica onírica não foge para uma construção estética à la David Lynch, mas sim apenas a realidade distorcida e sem preparação. Nada casa com nada. Tudo parece real demais, por mais que os detalhes coloquem tudo em um pacote de significados misteriosos e que não parecem estarem ali para serem explicados.

Thewlis e Collette talvez sejam o melhor do filme, suas construções são poderosas e ajudam Estou Pensando em Acabar com Tudo a ser ainda mais esquisito. A normalidade com que criam os personagens é perturbadora, principalmente enquanto Kaufman faz com que entrem e saiam de cena sem qualquer tipo de preparação, jogando o espectador em um labirinto temporal onde a única saída poderia ser a de acompanhar a protagonista indo embora, já que ela tem compromisso na manhã seguinte (por que esse compromisso também mude).

Existe ainda um outro pilar que sustenta Estou Pensando em Acabar com Tudo em toda essa intenção clara de quebrar qualquer expectativa. Enquanto a jovem mulher (Lucy, Lucia ou Louisa) e Jack parecem estar em uma timeline indeterminada (como tudo no resto do filme), um zelador de uma escola (Guy Boyd) passa por ela em mais um dia de trabalho em que um grupo de jovens estudantes ensaia a peça Oklahoma! e você parece conseguir relacionar tudo isso. Pelo menos pensa que consegue e, muito provavelmente, irá se frustrar também.

Mas Estou Pensando em Acabar com Tudo não é frustrante, é apenas ele mesmo. Não finge nunca ser algo além desse desfile de impressões e sensações por meio de enigmas e situações que brigam com o espectador em busca de significado. O uniforme do zelador pode ser a resposta, assim como o livro de Pauline Kael pode explicar a conversa no carro na volta para casa. A espécie de final de um filme ficcional dirigido por Robert Zemeckis pode ser uma dica do que foi verdade, mas também pode não ser. Fica à critério de cada espectador tentar fazer esse exercício.

As respostas do livro de Reid não se encaixam no rumo da história de Kaufman, mas talvez possam servir de acolhimento para quem se sentir muito perdido. Em ambos o clima é de um terror psicológico que amassa seus personagens, e isso ninguém pode tirar do trabalho de Kaufman. Suas composições ficam ainda mais apertadas com o formato de tela mais quadrado, assim como a impressão de um pesadelo que não te larga nunca deixará o espectador confortável em seu sofá (o filme é um lançamento da Netflix, então nada de poltrona do cinema).

De uma hora para outra, dentro do carro, o casal começa a citar um texto da crítica de cinema Pauline Kael, um trabalho para o The New Yorker que ficou famoso por contestar a qualidade de Uma Mulher Sob Influência, de John Cassavetes. O filme de 1974 também é sobre um casal em crise e, entre as impressões de Kael, estavam a inconsciência de, ou dos personagens, ou de Cassavetes. Talvez Kaufman tenha essa consciência, entenda onde quer chegar enquanto mistura isso com David Foster Wallace, Guy Debord´s e mais um monte de pensamentos e pensadores que irão escorregar pelas referências e se perderem nas palavras. Com certeza seus personagens não tem a consciência do que está acontecendo. Kael estaria certa nesse caso.

Talvez o filme de Kaufman seja mesmo um pesadelo, não dela, mas sim do protagonista, onde ela parece presa à essas impressões de mundo, ao relacionamento turbulento com a família, às lembranças na infância na fazenda e até as vergonhas da adolescência. Alguns pequenos traumas que perseguem a vida desse homem em seus momentos finais, caminhando pelos corredores vazios de sua mente e tentando lembrar daquilo que não aconteceu. Criando um pequeno sucesso na vida, uma medalha, um discurso e uma canção (Oklahoma!). Um monte de aplausos de todos que passaram por sua vida estão ali, na sua plateia, enquanto na verdade ele foi esquecido e coberto pela neve. Talvez  a jovem mulher não exista, mas sim ela seja todas as mulheres que passaram pela vida desse velho zelador, com os mais diversos nomes e profissões, pegas para uma última dança antes do fim.

Mas não dê muita atenção para isso, talvez Kaufman só queira que você sinta seu filme e passe por essa experiência. Há realmente algo de muito esquisito em Estou Pensando em Acabar com Tudo e isso talvez seja uma das maiores qualidades do quarto filme de Charlie Kauffman.


“I´m Thinking of Ending Thing” (EUA, 2020); escrito e dirigido por Charlie Kaufman, a partir do livro de Iain Reid; com Jesse Plemons, Jessie Buckley, Tony Collette, David Thewlis e Guy Boyd


Trailer do Filme: Estou Pensando em Acabar com Tudo

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