Editorial | RIP George A. Romero – Pai dos Mortos


Primeira vez que vi um filme de George A. Romero na verdade nem era dele, era A Noite dos Mortos-Vivos (1990), na verdade uma refilmagem do clássico de 1968, agora trazida para os ¿dias atuais¿ pelo mestre dos efeitos especiais Tom Savini. Diferentemente de sua carreira como maquiador de filmes de terror, seu lado cineasta não desflorou muito depois disso, mas o importante ali era a homenagem a George A. Romero. E isso ele fazia com precisão quase cena a cena.

Bem verdade já tinha visto uma cota bem grande de filmes de zumbis antes desse momento, mais foi ali que eu entendi tudo. Primeiro entendi que era Romero quem tinha inventado todo esse papo de gente morta andando por ai nos cinemas, e segundo que esses monstros sem vida nunca eram o perigo. Aquele velho papo do Thomas Hobbes de que ¿o homem é o lobo do homem¿.

Mas talvez tudo ainda fosse além, e era ai que entrava Romero.

Talvez o título de ¿Primeiro Zumbi do Cinema¿ acabe nem sendo dele, muito provavelmente seja do filme de 1923 com Bela Lugosi, Zumbi, A Legião dos Mortos (¿White Zombie¿), mas foi Romero quem levou isso para um patamar mais alto. Foi ele que viu nos zumbis a metáfora perfeita para uma sociedade que ainda sofria as mazelas do pós-guerra.

Noite dos Mortos Vivos

Mais do que isso, Romero sabia que tinha em ¿seus zumbis¿ o lugar certo para cutucar tudo à sua volta que o incomodava. A Noite dos Mortos-Vivos chegou aos cinemas em 1968 e olhava para os Estados Unidos paranoico diante da Guerra Fria. Não se sabe de onde nem porque os mortos estavam voltando de suas sepulturas, mas o que era certo é que na hora do desespero o sentimento de sobrevivência é sempre maior do que qualquer discussão moral.

Romero percebia ali que através de uma história comum (principalmente nos Estados Unidos com seu mito do Álamo) era possível mudar algumas peças, criar um filme de gênero, e discutir a sociedade. Sua provocação ainda ia além, em meio a uma série de conflitos raciais que tomavam os Estados Unidos (Malcolm X tinha sido morto três anos antes e Martin Luther King seria assassinado no mesmo ano), Romero dava seu filme para um protagonista negro (Duane Jones). A Noite dos Mortos Vivos mudou o cinema diante da inquietação genial de seu criador.

Ainda que Romero estivesse fadado a seus zumbis, os anos seguintes de sua carreira são tão interessantes quanto seu começo. O que o torna um diretor de terror que tenta a todo custo entender o que há por trás do gênero. Season of the Witch (1972) até dialoga com essa ideia, mas O Exército do Extermínio (1973) e Martin (1978) são exemplos de como o terror pode ser desafiador e incômodo. Um sentimento que talvez o leve a sua maior obra.

Despertar dos Mortos continua a observar aquele mundo dos homens sendo invadido por uma horda de zumbis. Um outro protagonista negro está lá, assim como um outro ¿Álamo¿, dessa vez um grande shopping center onde um grupo de sobreviventes passa a viver. Na verdade ¿viver¿ seria um exagero. Aquele grupo consome e mostra a decadência de uma sociedade que não consegue enxergar além de seu nariz.

Os zumbis voltam em manadas ao shopping como se repetissem seu mais profundo e primitivo instinto. Repetindo uma vida sem objetivo a não ser o consumismo. Dentro do shopping, um incrível microcosmo onde o futuro não precisa ser pensado enquanto o presente está repleto de comida, roupas e o que mais você quiser (não ¿precisar¿, ¿quiser¿ mesmo). Mesmo que lá fora exista um apocalipse zumbi, nosso Forte pode servir até que tenhamos que pensar em algo. E ainda que ¿Despertar dos Mortos¿ tenha sido lançado em 1978, nada no mundo parece ter mudado de lá para cá.

E talvez esse seja um dos pontos mais interessantes da genialidade de Romero: sua capacidade de prever aquilo que estivesse por vir (pulando um pouco, deem uma olhadinha em Diários dos Mortos de 2007). E em 1985 fechando sua primeira trilogia dos mortos com ¿Dia dos Mortos¿ faz mais uma vez a mesma coisa.

Para quem não ¿pegou¿, Romero por meio de seus ¿mortos¿ mostrou que a humanidade quando diante de um mal passa por esses três estágios. Primeiro vem a noite, onde tudo é desconhecido e você acaba tentando simplesmente sobreviver; depois vem o amanhecer (no original ¿Dawn of the Dead¿) onde você entende um pouco do que está acontecendo, consegue se proteger, mas ainda não saber como será o resto dos dias; para enfim vir o dia, onde você se acostuma, acha que está tudo bem e você está no controle, mas na verdade está apenas prestes a encarar mais uma noite.

Dia dos Mortos coloca os sobreviventes dentro de um bunker subterrâneo cheio de militares e cientistas. No lado de fora, um mundo tomado por zumbis, do lado de dentro algo que nem mais parece seres humanos, ou pelo menos que se esqueceu que aqueles mortos vivos não são apenas um ¿problema de segurança¿ ou servem para tiro ao alvo. Em seu terceiro filme, Romero mostra que quanto mais o ser humano se distancia do que ele realmente é, mais ele está fadado ao fracasso. Aqui, o personagem mais humano, com mais sentimentos e pronto para experiências é, justamente, um zumbi capturado para servir de experiência para os cientistas.

Uma sociedade onde não existe mais empatia, onde humanos deixam de ser humanos quando não estão ¿do seu lado¿. Onde os vivos não se importam. E quando a empatia acaba, não sobra nada a não ser destruição.

Nos anos seguintes o diretor ainda entregou dois exemplares incríveis de filmes de terror, o primeiro Instinto Fatal, o segundo A Metade Negra, esse, parceria com Stephen King, autor do livro e que já tinha trabalho com ele em Creepshow: Show de Horrores.

O legado de Romero ainda passaria por uma segunda trilogia dos mortos mais recentemente (Terra, Diário e Ilha dos Mortos), que muitos podem até encarar como menor, mas bem verdade têm uma relevância sócio-política tão grande para os dias atuais, quanto seus três outros filmes. Muito provavelmente por razões de orçamento ambos os três acabaram vítimas de uma distribuição precária, o que atualmente é quase como a morte de um filme.

Mas continuava discutindo ¿os mortos¿ como reflexo dos vivos, assim como o quanto esses que ficaram ¿por aqui¿ quase sempre não conseguem viver diante de seus próprios erros, egoísmos e perversões. Na divulgação de Despertar dos Mortos a frase ¿quando não há mais espaço no inferno, os mortos irão caminha sobre a Terra¿ ficou famosa, mas Romero parecia mais interessado em mostrar que o verdadeiro inferno quem faz são os seres-humanos e suas escolhas e carências. ¿Os mortos¿ estão por ai apenas seguindo seus instintos.

Seus zumbis nunca foram zumbis, mas sim reflexos, lembretes. Não corriam, vagavam, apenas iam. Não queriam nada, nem cérebro, nem atenção, apenas eram aquilo que eram: uma representação viva de seus instintos e de uma sociedade que os cercavam. Não existiram zumbis hoje se não fosse Romero. Na verdade seria difícil imaginar o gênero de terror hoje sem sua presença. Mas teremos que nos acostumar.

George Andrew Romero nasceu no Bronx em quatro de fevereiro de 1940. Faleceu ontem (16 de julho), no Canadá (após lutar contra um câncer de pulmão), mas mudou a minha vida aqui no Brasil e muito provavelmente de mais muita gente pelo mundo.

 

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