Editorial de segunda #05

Ou, por que o homem da caverna de Platão podia ter contado uma piada!

por Vinicius Carlos Vieira em 05 de Outubro de 2010

O ser humano é uma criatura fadada a se tornar refém de idéias e histórias. Desde até antes da língua falada, nossos ancestrais rabiscavam suas vidas para as próximas gerações, essas que por sua vez, olhavam para aquilo como um retrato fiel dos dias passados.

O que me leva a imaginar um daqueles homens das cavernas, escondido em sua… caverna, ocioso, meditando sobre a caça do dia seguinte enquanto uma enorme chuva castiga toda sua região, na parede ao seu lado um enorme zebu corre atrás de um boneco de palitinhos com uma pequena vara na mão, talvez seu avô. O que talvez os historiadores não contem, é o fator senso de humor, e é justamente disso que, provavelmente, nasceu a ficção.

Voltando ao sacana das cavernas, que pegou uma pedra e, logo sobre o pequeno zebu, desenhou um outro homem, esse na horizontal com os braços esticados, enquanto soltava um riso sobre o canto da boca e imaginava as próximas gerações acreditando em homens voadores. Duas ou três gerações depois (ou sei lá quantas necessárias para que alguns urros se tornassem palavras) algum descendente daquele cara lá de trás, e que herdou o mesmo senso de humor dele, para entreter uma noite qualquer de verão, contava a seus amigos que aquele voador era seu avô e que “andava pelos céus” para surpreender suas presas. É lógico que entre esse cascateiro e o diretor de cinema atual têm muitas, mas muitas mesmo, gerações de diferença, talvez até não sendo parentes diretos e compartilhem dele como elo “perdido” entre sua função no cinema e do contador de piadas.

Mas isso não importa, precisamos ficar atentos com o círculo de amigos que acreditavam em cada palavra que ele contava, cegamente, já que aquilo estava ali, desenhado como uma verdade universal na parede da caverna. Muito provavelmente Platão tenha levado em conta esse loroteiro ao dizer que o que estava desenhado ali era apenas um reflexo distorcido, um teatro de sombras da realidade, mas mesmo assim, essa platéia, ávida por ser enganada, ainda sobrevive nos dias de hoje, e é ela que permite ao cinema, vez por outra brincar de ser verdade. De ser aquele pobre coitado que volta para a caverna para contar o que viu no mundo real (do mesmo jeito que, vez o outra, ele também é destroçado por esses ex-companheiros).

É lógico que o público se empolga com o cinema corriqueiro, mas é sempre totalmente raptado quando a idéia é uma câmera real a frente de acontecimentos reais. Mantendo as proporções, é provável que, nos dias de hoje, Orson Welles tivesse achado em alguma cidade abandonada do interior, uma fita (ou DVD, ou celular, ou câmera) reportando a invasão de uma horda de marcianos maldosos e seus tripods ao invés de uma transmissão surpresa no rádio.

Ainda que no mundo atual, em uma sociedade cética e vacinada, uma mentirada dessas não colasse como colou em 1938, uma década atrás “A Bruxa de Blair” fez muita gente sair do cinema acreditando naquela história toda. E talvez tenha sido nesse momento que, por mais genial que seja o que veio, e virá, depois disso, não deixará mais ninguém ser enganado. Por outro lado, ainda assim, é só aparecer um exemplo de “achado misteriosamente no local depois de acontecimentos estranhos” que o público enche as salas de cinema com pulos a cada susto.

Tirando a megaprodução “Cloverfield”, que não conseguiria segurar uma veracidade diante de uma Manhattan destruída (mas ainda assim fazia bem sua lição de casa) o que todas essas produções “documentais” de terror têm em comum, é uma idéia inicial barata e uma linguagem que convive com essa idéia. Uma câmera no ombro (ou mão) de alguém que, mesmo enquanto nada acontece, não deixa um ritmo frenético se esvair. Aquela câmera que os programas de realidade policial deixaram famosas nos Estados Unidos, que parece pronta para focalizar tudo e todos, mas só faz isso por meio de relances. É exatamente aí que “Cloverfield” dá seu show, ao não ser egoísta com seu monstro, ao deixá-lo se formar na mente do espectador como um mosaico a ser montado, mas sem, em nenhum momento, fazer dele seu protagonista, impedindo o espectador de encarar aquilo como uma total mentira ou um Godzilla qualquer.

Não que, por um segundo sequer, no escuro do cinema alguém tenha entrado ali acreditando que aquilo era verdade, mas com certeza, a enorme maioria se deixou levar pelo clima e, consciente ou inconscientemente, desligou por alguns segundos aquele interruptor em seu cérebro que distingue o real da ficção.

É justamente por isso que, no final do “Último Exorcismo”, quando o padre corre na direção de uma enorme fogueira demoníaca, o público entorta o nariz, pois é despertado daquela realidade, onde o real dá lugar à ficção sem uma preparação. Assim como “[REC] 2” se esquece do que o fez famoso, do espectador menos acostumado à idéia de uma reportagem que entra em um prédio e encontra um bando de zumbis, mas agora precisa mergulhar em um clima com um grupo de soldados, um demônio e um padre exorcista. Um bando de arquétipos que parecem estar lá só para despertar o público daquele transe que carregava o primeiro filme.

Do mesmo jeito que “Atividade Paranormal” encheu os cinemas sem mostrar absolutamente nada, a não ser ruídos, sombras, pegadas e um bando de outras experiências que também figuram as histórias de “fantasmas” pelo mundo. Portanto, sua sequencia, que logo de cara em seu trailer, dá forma àquele espírito misterioso anterior (no caso a própria mulher), está fadada a ser um desastre caso siga esse rumo, já que o espectador quer mais é ser enganado pelo clima e não acordado por uma aparição concreta qualquer.

É preciso lembrar ainda que esse jeito “real” de ser não é uma exclusividade dos filmes de terror e ficção científica, com uma história do cinema cheia de mocumentários (termo usado para apontar aqueles filmes que fingem ser um documentário) interessantíssimos como o próprio “Reis do Iê-iê-iê” que mostrava os Beatles em turnê (que jogava a credibilidade para o alto com os momentos musicais, mas ainda assim compartilhava da linguagem), e o mais que cultuado “Spinal Tap”, que mandava às favas toda idéia e esculhambava com o mundo do heavy metal de modo ácido e cínico.

Mas de um jeito ou de outro, essa onda de realidade no cinema, principalmente agora com esse frenesi, parece encontrar um porto mais seguro justamente no terror, já que nele as expectativas de boa vontade de seus espectadores é sempre levada a níveis astronômicos. Quem entra para ver um filme de terror no cinema, paga, vez ou outra, para acreditar em qualquer baboseira extraterrestre, bem diferente do público de comédias, muitas vezes não aceitando, ou estando preparado, para o cinismo com que todo assunto, certos momentos, precisa ser tratado. Talvez tendo sido por isso, que aquele sacana lá atrás, tenha colocado-o voando sobre o zebu e não contando uma piada para ele, bem diferente do amigo da caverna de Platão, que se tivesse encarado tudo como uma piada talvez tivesse sobrevivido para contar a história

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