Deslembro

Deslembro | Um filme fácil sobre um tema difícil


[dropcap]D[/dropcap]eslembro começa deslumbrando com seu nome, um trocadilho simpático e até poético sobre o desmembramento de uma família, o esquecimento de quem fomos e as ambiguidades dos idiomas românicos, como o português, o francês e o espanhol.

Esse lado poético reverbera em cada cena do filme, em sua busca incessante por memórias básicas de nossa juventude. É uma viagem dúbia, que tenta resgatar ao mesmo tempo nosso passado jovem como pessoas e como (multi)nação.

A história começa na França, mas se desenvolve quase todo o tempo no Rio. É a história de uma menina que é filha de pais revolucionários em sua época, derrotados no passado e em busca de justiça. Ela, Joana (Jeanne Boudier), não está inserida nessa luta.

Isso porque suas memórias são negadas pela mãe, incluindo a morte/desaparecimento do próprio pai. Joana começa o filme com sua própria identidade, falando francês enquanto sua mãe quase não larga o português. O uso do idiomas na história tem significado, e é importante reparar em como Jojô (apelido de Joana) vai aos poucos se desprendendo do que até então parecia sua terra natal e retornando à complexa, conflituosa e multicultural América Latina.

A luta de Jojô, então, se passa internamente, no retorno gradual de suas memórias de infância, sua religação com a avó e com sua nova realidade. É significativo ela e a avó começarem distantes e ir se aproximando. Até a cena da igreja. Note que a poesia existe em diferentes níveis em Deslembro, assim como seu jogo de palavras. A reaproximação com a avó é sua forma de religião (palavra que vem de do verbo religar).

Esse jogo de símbolos e referências também funciona no próprio ambiente multicultural do filme. Podemos até “inventar” nossas próprias. Quando ouvi Jojô e as fotos dos Beatles na parede não foi difícil se lembrar do personagem da música Get Back de Lennon/McCartney, uma letra que remete justamente pelo apelo que a pessoa “volte de onde pertence”. (Para os mais novos, Jojô também é personagem do musical feito com as músicas da banda, Across The Universe.)

Mas mais importante que as palavras é a música, que desempenha um papel central na narrativa, se misturando com memórias ainda embaçadas, mas que lutam para vir à tona. Misturando uma cantiga chilena, rock inglês e samba brasileiro, fica fácil observar a riqueza artística do filme, que mistura com harmonia esses estilos. Além disso, os sons são uma pista importante para entendermos o que está acontecendo na mente dessa menina, que quase parece estar indo buscar em seus sonhos do passado um significado para viver.

A diretora/roteirista Flávia Castro já trabalhou em projeto semelhante, embora documental, no seu autobiográfico Diário de Uma Busca. O tema é o mesmo com abordagens diferentes: o resgate dos fantasmas do passado. Mas a seleção de músicas e montagem em ambos os filmes são marca registrada (Castro também trabalha como montadora).

O que é mais bonito em Deslembro é que ele possui todas essas camadas interconectadas, mas na sua superfície é uma simples história de readaptação de uma jovem a sua nova vida. Pode ser assistido por todos e acredito que cada um irá encontra sua maneira de se conectar, seja pela história política, pela época saudosista dos anos 70 e 80, pelas músicas e poesia. É um filme fácil sobre um tema difícil, que segue calmo, embalando aos poucos. É a sensação de despertar para o que um dia fomos na vida.


“Deslembro” (Bra, 2018), escrito e dirigido por Flávia Castro, com Jeanne Boudier, Eliane Giardini, Marcio Vito.


Trailer do Filme – Deslembro

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