Cinema sem Y | A Dura Vida das Namoradas


[dropcap]U[/dropcap]m casal é formado por duas pessoas – e, refletindo a heteronormatividade da sociedade, a maioria dos casais de filmes hollywoodianos é formada por um homem e uma mulher. É raro, porém, que a personagem feminina seja estabelecida como um ser humano multifacetado e complexo, ao contrário do homem (normalmente, o protagonista).

Por ser considerado algo apreciado principalmente pelas mulheres, filmes centrados em um romance (seja com mais ou menos elementos cômicos), é decepcionantemente a misoginia presente nestas obras. Supostamente, é a namorada que arrasta seu companheiro para os cinemas para assistir a esses filmes, mas por quê mulheres deveriam se importar com trabalhos que não estão nem aí para elas? Filmes românticos podem ser feitos “para elas”, mas é grande o número de homens que os escrevem e dirigem. É claro que homens são capazes de escrever romances e de criar excelentes personagens femininas – ninguém duvida disso -, o problema é não permitir que mulheres contem suas próprias histórias e de deixar (então) que os espectadores enxerguem as mulheres nas telas apenas através de um olhar masculino.

A típica co-protagonista romântica é a primeira (ou a primeira em muito tempo) mulher atraente a dar atenção ao protagonista (mesmo que o filme raramente se esforce para torná-lo minimamente atraente como par). Estilos de cabelo e de se vestir variam, mas ela é delicada e inofensiva. Qualquer demonstração de personalidade é vista como um arroubo de raiva ou tristeza. Sua vida além do romance com o protagonista é ignorada. O homem pode ser um péssimo namorado, mas sempre será perdoado, ou a narrativa sequer reconhecerá seus problemas. A mulher tem defeitos como insegurança, timidez, ser atrapalhada, cantar no chuveiro ou não saber o que quer fazer da vida. Esses defeitos são mais declamados do que inseridos na construção da personagem. Ela é engraçada, mas não demais; inteligente, mas não a ponto de intimidar o protagonista.Cinema sem Y

E, principalmente, o interesse do protagonista pela mulher é instantâneo. Assim que coloca os olhos nela, ela se transforma em seu principal objetivo. Naquele momento, ele forma uma ideia dela que permanecerá até que fiquem juntos de forma definitiva. Por isso, a personalidade, os interesses, as opiniões e desejos dela não interessam – qualquer coisa que o homem descobrir sobre seu alvo servirá para reforçar aquele pré-julgamento e, se for de encontro aquele ideal criado pelo protagonista, será simplesmente ignorado.

Esse “fenômeno” foi intitulado pelo crítico Nathan Rabin de Manic Pixie Dream Girl (MPDG): mulheres pouco desenvolvidas na tela cujo propósito é mover o arco dramático do homem, permitindo que ele encontre a felicidade ou aprenda lições de vida. Normalmente, elas são removidas da narrativa depois que o protagonista “amadurece”. Seus desejos e ambições pouco importam. A existência das MPDGs é decorrente de ponto de vista misógino, que pretere a mulher em favor do homem, e que só dá importância a ela enquanto objeto de desejo do protagonista masculino.

As MPDGs são, muitas vezes, excêntricas, com um gosto peculiar para música ou literatura e hábitos um tanto bizarros. Isso levou a uma classificação errônea de muitas personagens femininas multifacetadas e com agência como Manic Pixie Dream Girls simplesmente por elas possuírem algumas dessas características – o que é misógino por si só, já que demonstra que, mesmo que a narrativa construa essas mulheres como seres humanos complexos, o espectador (masculino) não a enxerga assim. Um exemplo é Summer Finn, interpretada por Zooey Deschanel em (500) Dias com Ela. O filme é justamente sobre o erro de projetar seus ideais e desejos em uma mulher que, obviamente, não será como imaginada por um homem que acabou de avistá-la. Da mesma forma, a Clementine de Kate Winslet de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças chega até mesmo a desabafar sobre o assunto: “Muitos homens pensam em mim como um conceito, ou que eu vou completá-los ou fazê-los se sentir vivos, mas sou apenas uma garota ferrada procurando minha própria paz de espírito. Não me encarregue da sua.”

Sumer e Clementine são mulheres complexas e bem construídas, com planos, sentimentos e opiniões próprias, que existem além dos protagonistas masculinos. Seus filmes, porém, foram escritos e dirigidos por homens. Um ótimo exemplo da mesma desconstrução, dessa vez do ponto de vista de quem realmente sente na pele essa misoginia, é Ruby Sparks: A Namorada Perfeita, roteirizado pela também atriz Zoe Kazan que, além de assinar o roteiro, vive a personagem-título.

Ruby é, literalmente, a mulher dos sonhos do protagonista, Calvin Weird-Fields (vivido por Paul Dano, namorado de Kazan). O romance com elementos de fantasia acompanha um escritor que, depois de sonhar com uma garota, volta a ter inspiração para escrever seu segundo romance, uma década depois de lançar seu primeiro livro, considerado um futuro clássico da literatura norte-americana. Calvin torna-se obcecado pela personagem que criou, até que ela surge no mundo real, sem ter ideia de que é fruto da imaginação do homem que ela acredita ser seu namorado.

Cinema Sem Y

Inicialmente, Calvin a considera perfeita. Com o passar do tempo, Ruby começa a ter desejos e aspirações fora do relacionamento e a querer ter tempo para si mesma. Calvin responde exercendo o poder que tem sobre ela: qualquer coisa que ele escrever sobre Ruby torna-se realidade. Ela não consegue funcionar longe dele. Quando ele se cansa do grude da namorada, ele escreve que ela vive em um estado de alegria. As constantes mudanças de humor começam a pesar sobre Ruby, e ela logo torna-se infeliz e a dar indícios de que o namoro está chegando ao fim. Quando ela diz que vai embora de seu apartamento, Calvin conta-lhe a verdade, e mostra a ela que pode obrigá-la a fazer o que ele bem entender.

Assim, além do arquétipo da MPDG, Ruby Sparks traz à tona questões como abuso e possessividade, conceitos nada ficcionais. Muitos homens buscam controlar suas namoradas, policiando onde elas vão, com quem, que roupa usam. Depois que ela entra na piscina com outro convidado em uma festa, Calvin declara que as regras para o relacionamento dos dois são que ela “não pode transar com outros homens” ou “fazer com que outros homens pensem em transar com você”, ao que ela acertadamente responde que não pode controlar o que os outros pensam. “Sim, você pode. Quando você age de uma certa maneira, incentiva as pessoas.” É a típica culpabilização da vítima, que leva, por exemplo, a mulheres que foram estupradas ouvirem coisas como “mas por que você estava sozinha?” ou que justificam o crime pela roupa que a mulher usava.

Em uma perturbadora cena, Calvin faz com que Ruby fique de quatro, latindo e grunhindo como um cachorro – ele a desumaniza, mostrando o total poder que tem sobre a mulher. É o desejo de muitos protagonistas masculinos em busca de romance – uma mulher que satisfaça todas as suas vontades e que seja a “namorada dos sonhos”, ignorando a independência dela em favor de suas próprias idealizações.

Cinema Sem Y: Ruby Sparks

Quando suas heroínas românticas não agem conforme o esperado, os protagonistas exclamam que “não entendem as mulheres”. É verdade – não entendem que elas são seres humanos próprios, que não existem para preencher a vida de um homem. Isso, conscientemente ou não, transborda para o cinema, e faz com que as personagens femininas não recebam o mesmo tratamento que os masculinos, resultando em mulheres completamente distantes da realidade.

É um ciclo vicioso – a misoginia do mundo real é refletida na mídia que, assim, contribui para a manutenção da mesma. Um grande passo para melhorar a situação das personagens femininas em romances é, portanto, abrir espaço para que mulheres também possam contar essas histórias e discutir questões que as afetam diretamente. E, além disso, uma noção básica: o envolvimento do(a) espectador(a) é muito maior se ele/a conhecer e se importar de verdade com ambas as partes, e não apenas com uma das metades (a masculina) do casal.

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