Cinema sem Y | Desafiando o masculino como padrão


[dropcap]Q[/dropcap]uem navega pelo mundo do fandom na internet provavelmente conhece a Regra 63, que afirma que, para cada personagem fictício, existe uma versão do gênero oposto. Artistas adeptos da fan art se divertem com a declaração, desenhando seus personagens preferidos com o sexo alterado. Em busca de uma maior representação feminina na ficção, a Regra 63 é utilizada principalmente para imaginar personagens masculinos como mulhere, desenhando, por exemplo, Peggy Carter como a Capitã América. No Tumblr, a tag “everyone is a lady” (“todo mundo é mulher”) traz reimaginações de elencos inteiros em que as mulheres permanecem enquanto os personagens originalmente homens têm o gênero alterado. O episódio “Neutopia”, de Futurama, brinca com a noção ao trazer seus personagens trocando de gênero.

Mas não é só na imaginação dos (das) fãs que personagens tipicamente masculinos ganham uma nova interpretação: a série Elementary, atualmente em sua terceira temporada, é uma versão modernizada das histórias de Sherlock Holmes, com Lucy Liu como Joan Watson. Recentemente, Emily Kinney, a Beth de The Walking Dead, foi escalada para interpretar uma nova versão do vilão Bug-Eyed Bandit, até então sempre representado como homem, na série The Flash.

Recentemente, no Twitter, Sasha Stone, do Awards Daily, levantou a questão de que a maioria dos filmes protagonizados por homens poderiam, facilmente, trazer uma protagonista mulher no lugar, sem grandes alterações necessárias: Locke, O Abutre, Boyhood, Whiplash apenas alguns dos filmes que poderiam ter escalado mulheres nas mãos de cineastas imaginativos”, declarou ela no Twitter.

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Pois a verdade é que, ao contrário do que muitos homens –  e mesmo mulheres – parecem pensar, homens e mulheres não são assim tão diferentes – e é possível contar histórias sobre mulheres que não envolvam a procura por um marido ou maternidade. Jessica Chastain, uma atriz que discute representação feminina com frequência e busca escolher papéis complexos, fala sobre isso ao discutir sua personagem em Interestelar, de Christopher Nolan, originalmente do sexo masculino:

“Em Interestelar, meu papel originalmente havia sido escrito para um homem, e Christopher Nolan mudou para uma mulher. Eu acho que ele não teve que mudar nada no papel para tornar a personagem mulher, e isso me fez perceber que, no final, homens e mulheres não são tão diferentes. Eu vou começar a olhar roteiros e pensar em quais personagens masculinos poderiam ser mulheres!”

Outros filme que trocou o sexo de personagens é Salt, estrelado por Angelina Jolie – o protagonista originalmente seria Tom Cruise. Quando a Columbia Pictures chamou Jolie para interpretar uma personagem equivalente a uma Bond Girl no filme de espionagem, ela declarou que adoraria participar do projeto interpretando “o próprio James Bond”. O diretor Phillip Noyce, que já havia mostrado interesse em criar uma franquia de espionagem comandada por uma mulher, adorou a ideia e alterou o gênero do protagonista.

Mesmo interessado em uma protagonista feminina, Noyce havia escrito seu espião com um homem em mente – o gênero masculino, no cinema, é o padrão. É preciso ativamente pensar em incluir uma mulher para que isso aconteça. Um forte exemplo disso é o roteiro de Alien, de Ridley Scott: apesar de especificar que a tripulação era “unissex”, ou seja, quaisquer personagens poderiam ser homens ou mulheres, o roteiro trazia todos como homens – a alteração aconteceria se alguma mulher fosse escalada. Sigourney Weaver decidiu tentar o papel da protagonista, e Ellen Ripley se tornou uma das personagens mais icônicas da ficção científica.

No final de janeiro, foi anunciado que o novo filme dos Caça-Fantasmas será estrelado pelas atrizes Kristen Wiig e Melissa McCarthy e pelas comediantes Leslie Jones e Kate McKinnon, do Saturday Night Live. O filme será dirigido por Paul Feig, de Missão Madrinha de Casamento e As Bem-Armadas, e escrito por ele ao lado de Katie Dippold, de Parks and Recreation e As Bem-Armadas. É uma dupla acostumada a trabalhar com mulheres na comédia e, se não fosse pelo já comprovado sucesso de Feig comandando elencos femininos no gênero, a ideia de mulheres como Caça-Fantasmas provavelmente não teria sido aprovada pelo estúdio – mesmo assim, o diretor deve ter batido o pé na decisão para vê-la aceita.

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O longa original, de 1984, é merecidamente uma das comédias mais adoradas dos anos 80. Estrelado por Bill Murray, Dan Aykroyd e Harold Ramis, a história do trio de professores que resolvem ganhar a vida solucionando mistérios sobrenaturais traz Sigourney Weaver como a moradora do apartamento mal assombrado que os Caça Fantasmas investigam – além dela, a única mulher de destaque é a secretária do trio, interpretada por Annie Potts. O elenco retornou para a sequência de 1989, que não alcançou o sucesso do primeiro.

O novo Caça Fantasmas, que deve chegar aos cinemas em 2016, é um reboot da franquia – uma tentativa de restabelecer o longa e, provavelmente, originar novas sequências. No momento em que o estúdio e os realizadores decidiram seguir por esse caminho, e não realizar uma refilmagem ou continuação, a natureza dos novos personagens em relação aos originais deixa de importar: o trio original é formado por três homens brancos e, no novo filme, pode ser formado por quaisquer outras pessoas. Detalhes sobre as personagens não foram divulgados, mas as quatro atrizes são as protagonistas.

Quando a notícia alcançou a internet, não foi surpresa (infelizmente) o número de comentários sexistas declarando indignação com o elenco formado apenas por mulheres. O Daily Dot compilou alguns comentários no Twitter, que vão desde “eu apoio a igualdade dos gêneros, mas só mulheres???” até “apenas mães suburbanas e feministas burras vão ver isso”. Claro, alguns dos comentários são apenas as reclamações típicas que surgem quando alguém “ousa tocar um clássico”.

Obviamente, é possível que o novo Caça Fantasmas seja ruim, mal escrito, pouco engraçado e uma perda de tempo – nada do que tem a ver com o fato de ser liderado por mulheres; afinal, um elenco totalmente masculino está longe de ser garantia de qualidade. O remake de Annie, por exemplo, vem sendo considerado um fracasso pela crítica, mas isso não justifica as reclamações ao longa simplesmente pelo fato de que a órfã agora é interpretada por uma garota negra – a etnia de Quvenzhané Wallis em nada influencia a qualidade da produção.

Outro argumento é o de que os estúdios deveriam investir em produções originais envolvendo elencos femininos, e não simplesmente pegar produções já conhecidas e incluir mulheres. É até compreensível, mas injustificado – como destacado acima, ao fazer do novo filme um reboot, e não uma refilmagem, sem o retorno do elenco original (há rumores de que Bill Murray fará uma participação, mas Harold Ramis morreu em 2014 e Ivan Reitman não quer saber do projeto), os realizadores apagam qualquer necessidade de que o novo elenco se assemelhe ao original. Kristen Wiig, Melissa McCarthy, Leslie Jones e Kate McKinnon vão interpretar personagens inéditas, escritas com mulheres em mente, e não versões feminilizadas do trio original.

Mas, é claro, se os novos personagens também fossem homens, o volume das reclamações seria bem mais baixo.

É importante – essencial – investir em produções envolvendo mulheres, e dar espaço a novas vozes com projetos originais. Até hoje, a maioria dos filmes é protagonizada por homens brancos porque eles ainda dominam a indústria, como realizadores, produtores e executivos. Por outro lado, Hollywood está tomado por reboots, sequências, spin-offs e refilmagens – por que as mulheres deveriam ser excluídas disso? E não apenas elas: a internet foi tomada por comentários racistas quando o teaser trailer de Star Wars: O Despertar da Força apresentou o ator britânico – e negro – John Boyega como o novo protagonista da saga, e até mesmo quando alguém sugeriu que Idris Elba seria um excelente James Bond.

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Qualquer coisa que desafie a presença suprema do homem branco é vista com maus olhos pela parcela misógina e racista do público. O que, claro, não chega a fazer tanto estrago assim: nos Estados Unidos, mulheres são mais de 50% da audiência que vai aos cinemas e, para cada pessoa que deixa de ver um filme apenas porque ele não traz um homem branco no centro da história, há outras pessoas ansiosas por histórias com elencos diversificados, que realmente reflitam o mundo em que vivemos.

O novo Caça Fantasmas pode ser um desastre ou uma ótima comédia que honre o original (ninguém liga para a sequência de 1989). Se for ruim, outra chuva de comentários discriminatórios culpará o elenco feminino pelo fracasso. Se o novo elenco fosse totalmente masculino e, mesmo assim, fosse de péssima qualidade, uma parcela menor do público apontaria a falta de diversidade. Filmes com elencos totalmente masculinos e caucasianos fracassam o tempo todo – são a maioria das produções e, consequentemente, falham mais -, mas isso nunca é apontado como razão da falta de qualidade. Se o filme solo da Mulher Maravilha for ruim, muitos falaram algo como “Viu? Super-heroínas não podem comandar filmes!”, esquecendo que O Homem de Aço, por exemplo, é pouco memorável.

Mesmo com todos os contratempos, alguns realizadores e estúdios decidem investir em histórias de mulheres, e as atrizes e cineastas, cada vez mais, discutem o sexismo e a desigualdade de Hollywood. A situação, aos poucos, está mudando – e o novo Caça Fantasmas, seja qual for o resultado final, está ajudando a indústria a dar um passo adiante.

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