Cinefilia Crônica | … Reticências


[dropcap]U[/dropcap]ma tia-avó sofreu um AVC no início do século. Passou anos sobre uma cama até falecer por complicações diversas. Eram comuns as idas ao seu apartamento, no centro da cidade. Ficava a tarde toda entediado, enquanto minha mãe ajudava as primas de meu pai. Quando ele chegava do trabalho, íamos para casa.

Em uma tarde dessas, não queria sair. Chatices de criança. Era sábado, eu não tinha o que fazer. E tomei conta do controle da televisão da sala, sozinho. A sessão de sábado naquela semana de janeiro exibiria …E o vento levou. Um dos alunos mais espertos da sala, tive curiosidade em ver aquele filme cujo título começava com reticências. Deveria ser muito ruim, qualquer um sabia que os três pontinhos deveriam vir ao fim da frase, para deixar uma impressão vaga, como dizia a tia Ana Maria, nas aulas de português.

Passou a hora do almoço e prometi me comportar se estivesse autorizado a ficar sozinho no sofá, vendo um filme. Quando disse à minha mãe o nome da velha película, preferiu os cuidados com a saúde da parente. Eu poderia ficar quantas horas quisesse à frente da TV, desde que ela não precisasse assistir junto.

Entre a trama interminável e ficar apertado esperando o intervalo comercial, saí do sofá depois das 18h. Era uma época em que meu pai precisava apelar às horas extras para fechar as contas de casa. Era uma época em que só os primos ricos tinham TV por assinatura em casa. Era uma época anterior aos caldeirões de sábado, passavam filmes interessantes, ainda que dublados. Era janeiro e não sei se isso tinha alguma influência na exibição daquela raridade em dia de folga para boa parte dos trabalhadores do país.

Passou o tempo, a tia-avó faleceu e desocuparam o apartamento no centro da cidade. Meu pai se orgulhou de mim ao chegar do trabalho naquele sábado distante. Cansou de falar sobre Os 10 Mandamentos, Assim Caminha a Humanidade, Ben-Hur e outras películas com três ou quatro horas de duração. Quando surge, vez ou outra, uma dessas produções que parecem não ter fim, lembro aquela sessão interminável.

Em tempos de redes sociais e apitos no celular a cada minuto, só nós, os cinéfilos, damos o devido valor a esses filmes extensos. Passar mais de duas horas à frente da tela exige disciplina, paciência, bom gosto. Passando de duas horas e meia, necessitamos de muita atenção. Mais de três horas têm a indicação de um copo d’água e comida ao lado – para evitar problemas como desidratação, inanição etc.

Não tente comparar esse ato religioso a maratonar uma série. O intervalo entre um episódio e outro é a permissão para respirar que os filmes gigantescos não nos permitem.

Ainda hoje, ouço a trilha clássica de …E o vento levou em momentos dramáticos. Já chamei uma ex-namorada de Scarlett O’Hara durante uma discussão. Um velho amigo, que se achava o garanhão, cansou de me perguntar os motivos para o apelido de Clark Gable.

Aquele filme, no prédio do centro da cidade, com a tia-avó na cama e eu sentado no sofá, ainda não acabou, mesmo após as 3h58min de duração. E nunca acabará.

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