Cinefilia Crônica | O colecionador de videocassetes


Sou muito fã do Denzel Washington, desde os tempos de limpar o cabeçote dos videocassetes com uma folha de papel vegetal ¿ eu e meu pai lemos numa revista que o papel sulfite não era tão eficaz assim e até hoje não sei se isso é lenda.

Quando esperávamos o cair da noite de sexta-feira para ir à velha locadora alugar três fitas VHS e devolvê-las na segunda-feira, avistar uma capa com Denzel estampado era certeza de um filme a menos para ser escolhido. Se sua foto estava ali, nem havia muito a pensar, pensávamos. E ainda pensamos.

Semanas atrás, comentei no café da manhã sobre Um Limite Entre Nós já estar disponível no streaming da TV por assinatura de casa. Num domingo, meu pai cochilou no sofá de casa, minha mãe pausou o filme e ele só continuou no fim da noite, depois de arrumar a mochila para o trabalho do dia seguinte.

Nada comparado à frustração do dia em que O Colecionador de Ossos foi anunciado e marcado em nossa agenda para a exibição na TV aberta em plena segunda-feira à noite. Os anos 2000 engatinhavam. Ele acordava às 5h da matina para ir trabalhar, eu levantava poucos minutos depois para ir à escola. Não daria para ficar até tarde em frente à tela e a gente já reclamava da duração exagerada dos intervalos comerciais.

O jeito seria gravar. Afinal, as compras do mês tinham as fitas virgens na lista. Foi uma pena ter perdido o tempo para alugar esse filme em que o Denzel ¿ somos amigos ¿ não se move e auxilia uma investigação de um serial killer. Na escola, amigos diziam ser um filme espetacular, acima da média. A falta de trocados naqueles anos de mais dureza nos obrigou a escolher qual filme sacrificaríamos, gravando a atração noturna por cima dele, numa fita já usada.

O manual do videocassete ficava ao lado da TV de 29 polegadas. Havia aprendido a programar a hora exata em que ele começaria a gravar um programa de TV e torcia para não faltar luz. Era comum esperarmos meu pai chegar de casa para assistirmos Sai de Baixo, Intercine ou Jô Soares Onze e Meia.

Mas O Colecionador de Ossos gerou mais expectativas que o normal. Chegou a ser difícil dormir naquele fim de semana com anúncios no intervalo dos jogos sobre o filme inédito a passar na Tela Quente.

Esperei meu pai chegar e o ajudei a programar naquela fita BASF com capa vermelha. Fiquei em frente à TV para conferir se a gravação começaria e fui dormir para não ver nenhum detalhe ¿ desconhecia o termo spoiler naquela época ¿ e me atrasar na escola no dia seguinte.

– Gravou sim, filho.

Meu pai leu minha mente e sequer perguntei a única coisa que importava naquela manhã. Ele voltou para casa correndo do serviço e o café com pães foi na frente da tela, contrariando todas as recomendações de nutricionistas e endocrinologistas.

Demos play e apertamos o FF para passar mais rápido pelos intervalos comerciais, estranhamente mais longos que o comum para aquele filme. Talvez pelo ineditismo, ou para segurar a audiência. A angústia aumentava tanto pela espera de saber quem era o assassino, quanto por sabermos que as fitas VHS tinham um tempo limite de gravação.
E ele terminou exatamente no último intervalo, no exato instante em que se revelaria o serial killer, entrando no quarto em que o velho Denzel coordenava as investigações daquele caso macabro. Gravou sim, mas não gravou tudo. Confesso: foi uma das maiores frustrações da minha vida.

Fui dormir chorando por não ter tido dinheiro para alugar o filme quando estava na locadora e aprendi um pouco de como funciona o mundo. Também desolado, meu pai me consolou. Passamos algumas semanas procurando por um Denzel tetraplégico, nunca achamos. As locadoras não se importavam com filmes velhos, de dois anos atrás. Tivemos que esperar meses por uma reprise.

Esses novatos em cinema, vangloriando qualquer série repetitiva de roubos com gente mascarada nunca vão saber a emoção que era gravar em videocassete para assistir no dia seguinte. Meu pai sente falta das locadoras, mas prefere escolher filmes ¿ do Denzel ¿ sem sair do sofá. E mesmo raramente vendo filmes exibidos em canais de TV, ainda odeio seus extensos intervalos comerciais.

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