Alice Júnior | Felicidade como ato revolucionário

*o filme faz parte da cobertura da 43° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


[dropcap]A[/dropcap]lice Júnior me remeteu fortemente ao adorável Com Amor, Simon. Ambos preenchem um vácuo importantíssimo: filmes leves, fofos e otimistas centrados no cotidiano e na vivência de protagonistas LGBT – um adolescente gay, no caso de Simon, e uma garota trans, no caso de Alice Júnior. Assim, o que era clichê torna-se revolucionário.

E não apenas pelo fato de que a mudança no ponto de vista já é capaz de transformar uma história batida em algo novo, repleto de frescor. Mas também por que, para uma jovem como Alice (Anne Celestino), a própria felicidade – apenas sua própria existência – é um ato revolucionário. Em uma realidade em que a expectativa de vida de pessoas trans é de 35 anos, ver Alice indo bem na escola, tendo um relacionamento incrível com o pai (Emmanuel Rosset), fazendo amigos e se apaixonando é tocante.

É claro que, no meio de tudo isso, ela sofre. Bastante. Amores não correspondidos, a dificuldade de fazer amigos em uma nova escola, a adaptação em uma pequena cidade gaúcha depois de anos em Recife. Situações normais na vida adolescente (e, certamente, na vida adolescente de cinema). O diretor Gil Baroni e o roteirista Luiz Bertazzo entendem bem a importância de retratar a banalidade da vida de Alice, mas também o quanto essa banalidade traz diversas outras nuances para uma garota trans.

Assim, a crueldade das outras meninas da escola não são apenas implicância com a aluna nova, mas preconceito. Os professores não são apenas “chatos”, mas efetivamente cruéis ao insistirem em chamar Alice por seu nome de registro — mesmo o único professor que não se mostra transfóbico demora meses para entender o quanto Alice está sofrendo com coisas básicas como não poder ir ao banheiro durante as aulas, já que as outras garotas se recusam a deixá-la usar o banheiro feminino. A cena da “humilhação na festa da aluna popular” quase que obrigatória em filmes adolescentes rende um momento belíssimo de aceitação e sororidade.

A construção da relação entre Alice e seu pai, Jean, também se mostra muito acertada. Indo no caminho contrário da maioria das produções sofre protagonistas trans, Alice Júnior deixa a garota ter um relacionamento de amizade e puro companheirismo com o pai, que se encanta ao ver a filha toda arrumada para o primeiro dia na nova escola, que insiste em corrigir sempre que alguém se refere a ela no masculino e que está ao seu lado para qualquer coisa. Pode não ser a realidade da maioria dos jovens e das jovens trans, mas esta é a beleza da arte: ela não precisa ser apenas o que somos, mas o que podemos ser.

Centrado na performance vibrante e carismática (e autêntica, já que ela própria é uma jovem trans) de Anne Celestino, Alice Júnior é um exemplo perfeito da importância de contarmos histórias diversas no cinema e do quanto o que parece mais clichê e comum para quem é maioria pode ser revolucionário quando falamos de quem ainda é tão marginalizado. O mundo das maravilhas de Alice é, definitivamente, um objetivo a ser alcançado.


Alice Júnior (Bra, 2019), escrito por Luiz Bertazzo, dirigido por Gil Baroni, com Anne Celestino, Emmanuel Rosset, Surya Amitrano, Matheus Moura e Thaís Schier.


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