Acqua Movie | Desvia as águas e toda emoção para bem longe


Acqua Movie é de um gênero bem específico: filme “de cabine na pandemia”. Essa espécie de gênero criado para atender às demandas de apesar do isolamento social que vivemos haver divulgação para filmes sendo lançados em streaming. Porém, por enxergar um risco maior de pirataria e conteúdo publicado antes da data do embargo, as distribuidoras evitam dar acesso às produções mais badaladas e entregam aos divulgadores de nicho, filmes meio “lado B” e de menor importância, que lembram mais um estilo “filme de arte”.

Porém me sinto na obrigação de contar algo simpático para não pegar muito mal e conseguir manter os convites para as “cabines” chegando no e-mail, portanto, Acqua Movie é um filme que a vontade com sua arte. Entretanto, o que me vem à cabeça mesmo é que, apesar de toda experiência de Alessandre Negrini, ela não está bem. E ela é grande parte do filme.

Logo que aparece em tela e a partir daí até o final do filme, este se revela um trabalho burocrático da atriz, com um sorriso amarelo enigmático para economizar expressões. De certa forma toda a produção aos poucos se revela burocrática. Sem paixão e com medos políticos que minam a energia para narrar este conto estendido de visita às origens, o reencontro entre mãe e filho e o pano de fundo histórico… tudo é preguiçoso, colocado no texto do roteiro sem maiores surpresas. E as surpresas que existem são todas ruins.

Lançado na 43a. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, de 2019, esta é a segunda parte da trilogia do diretor pernambucano Lírio Ferreira, onde a primeira parte você deve conhecer, se chama Árido Movie e é de 2015, as ideias por trás do longa são bem claras. Claras demais para guardar qualquer sutileza para nos entreter. Se trata desse retorno às origens do jornalista visto no filme original. Na verdade, do filho dele, Cícero, e de sua mãe, Duda.

Perto do original este é um filme minimalista ao extremo. Baixa produção, poucos atores (atuando nada), pouco roteiro e nenhuma direção tornam Acqua Movie o filme perfeito para deixar passar no serviço de streaming enquanto almoça ou janta.

O rapaz que interpreta Cícero, Antonio Haddad Aguerre, é digno de “escola Global” de atores: completamente alheio ao seu personagem, dizendo suas falas sem graça, milimetricamente e culturalmente neutras para “pagar” de filho de paulistano. Ele está de luto pela morte do pai, e isso soa de acordo com sua performance, o que é motivo de sobra para não comparecer em nenhum set de filmagem com a alma presente. É um robô bem adestrado conforme nossa tradição nacional em interpretar garotos paulistanos: sem graça e dizendo o batidíssimo “orra, meu”. Me senti nos anos 90 por alguns momentos, ou em um quadro do Boça, ícone do humor dos comediantes Hermes e Renato.

E por falar em humor, as poucas piadas do filme carecem de energia, ou simplesmente estão ausentes. O meme internético explica: “the left can’t meme”. E nem fazer piadas. Há uma bem no meio da produção, sobre uma refeição risível, a respeito de uma “galinha capoeirista”, que chega a ser digna de pena. Se estivesse no cinema escorregaria da poltrona até o chão. Talvez saísse da sala, em respeito aos idealizadores.

As caricaturas que sentam à mesa, novamente na mesma sequência citada (talvez seja o grande momento do longa pelas vezes que estou citando), também vieram dos anos 90, mas com roupagem moderna. O tio do pai falecido é esse prefeito de uma cidadezinha do Nordeste seguindo uma linhagem de coronelismo familiar, vestido com calça jeans e camiseta pouco abotoada, quase um agroboy quarentão, e seus capangas ao lado. A família que mora na região quer todas as terras indígenas em torno do Rio São Francisco; o novo Velho Chico após sua transposição, cercando a cidade chamada de Nova Rocha. Este é um filme feito também para comentar sobre este polêmico projeto de transposição do rio, só agora com seu desastre discutido mais abertamente.

A produção barata de Acqua Movie prejudica o andamento da história, mas não tanto quanto sua direção, afetada por essas manias de usar a câmera com o filtro dramático, mexendo mais do que devia e desfocando por “efeito artístico”. Pode ser por uma boa causa: tudo para trazer emoção ao projeto, já que ele não virá das atuações.

Este filme é um retrato muito fiel do cansaço e da derrota dos pós-2018. Há uma desistência. Ele se torna melancólico, mesmo que sua curva final se esforce pelo “e deu tudo certo”. Não deu. Os xamãs não curam tiro de revólver, e uma mãe responsável deveria ir ao hospital. Há sempre uma nota de desesperança ecoando por todo o filme. É triste de ver, mas seria poderoso se fosse um bom trabalho, mas as energias foram drenadas. Assim como o antigo São Francisco, as águas foram suavizar a vida de outros.

O uso pontual de inglês falado no filme não serve como chamariz internacional, embora seja uma boa tentativa. A ponte inexistente entre o projeto da mãe, diretora e documentarista, que fica suspenso lá na Amazônia, e o velho Nordeste, mas também com índios, também não funciona. No começo uma língua nativa diz sobre o mistério das águas. Seria gratificante se o filme tivesse algum mistério em seu fluxo. Mas do começo ao fim parece tão do mesmo que o máximo que dá pra fazer para se entreter é buscar os simples furos do roteiro, mas observá-los faz brotar dentro de nós mais fácil uma indignação do que a compaixão. É difícil sentir pena dos produtores de Acqua Movie. Eles não facilitam nossa vida assistindo essas quase duas horas de lenga-lenga.

A vida irá seguir seu fluxo através da água, seja ela no Velho ou no Novo Chico. Quem faz uma poesia sobre o poder místico das águas e defensor da sociedade líquida que vivemos deveria entender que nada é para sempre. Essa visão antiquada de contar histórias de fundo social no cinema brasileiro vai contra essa proposta. Mas essa é uma conclusão pós-filme. Só o tempo dirá.


“Acqua Movie” (Bra, 2019); escrito por Paulo Caldas, Lírio Ferreira e Marcelo Gomes; dirigido por Lírio Ferreira; com Alessandra Negrini, Antonio Haddad Aguerre e Guilherme Weber.


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