A Vida Invisível | Encantador e obrigatório, feito para pensar

*o filme faz parte da cobertura da 43° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


[dropcap]A[/dropcap] Vida Invisível é um retrato tão fiel e acolhedor de um Brasil patriarcal que em alguns momentos ele corre o risco de estar fazendo apologia, simplesmente por recorrer às nossas memórias afetivas e culturais de uma época, e como todos sabem, memórias não funcionam em termos de boas ou ruins. Todas elas são uma mistura só, e o filme de Karim Aïnouz demonstra isso com elegância e sem discurso fácil.

A Direção de Arte de Rodrigo Martirena materializa esta época de duas gerações atrás, nos transporta para ela através de uma série de sensações afetivas com nosso passado. Digo isso não como alguém que viveu os anos 50 no Rio de Janeiro, onde a história se passa, mas como brasileiro que teve pais influenciados através de seus próprios pais, e três gerações ainda mantém um elo cultural muito forte para ser descartado.

Essa sensação familiar vai desde os detalhes dos cenário e figurino para mais além, para as cores, as luzes. Uma fotografia inspirada em textura dessas luzes resgata as formas e o estilo do passado. E tudo vem à mente de uma só vez: as paredes simples, os azulejos no corrimão que dá para um jardim caótico de plantas, ambientado pelos sons suburbanos geralmente ouvidos pelas donas de casa, que ficam o dia inteiro enfurnadas em seus domicílios.

Mas apenas impressões visuais não seriam suficiente para nos transportar. A criação das duas personagens principais, Eurídice e Guida, no roteiro e nas atuações, é um exemplo de como não forçar a situação com diálogos artificiais e exagerados. É dessa abordagem que também surge o humor do filme, como o exemplo prosaico de quando Guida coloca um vestido justo e perfeito que a faz ter vontade de ir no banheiro. É o humor extraído de situações banais para quem vê de fora, mas indissociáveis do imaginário e cultura popular.

É por isso que sabemos que o pai delas, um português, além de seguir o estereótipo e ter uma padaria é rígido demais com as meninas. Mais do que rígido, na verdade. São tempos (os últimos) em que os homens de fato controlam por absoluto o destino da mulher. Mas os homens do filme não são maquiavélicos ou vilões por escolha própria. São meio bobões, até, alheios à existência de um ser humano por trás de sua esposa ou filha. Tão acostumados que estão aos costumes, chegam a ser patéticos em seus comportamentos. Eles mal sustentam um personagem.

E por isso a escalação de Gregório Duvidier, comediante do canal no You Tube, Porta dos Fundos e palpitador de assuntos que não conhece em outros lugares, é a escola perfeita para Antenor, marido de Eurídice. Por que ela o escolheu como esposo? Nem esse detalhe merecemos saber, mas podemos inferir, pois não que ela tivesse um leque apetitoso para selecionar. O mais provável é que ele fora a opção que parecia mais inofensiva para ela, e de fato é. Duvivier aqui reproduz uma persona comum em seus papéis no Porta: um homem sensível (leia: mimado) egocêntrico que nunca vai crescer.

Já Eurídice e Guida, interpretadas respectivamente por Carol Duarte e Julia Stockler, exibem uma afinidade com seus papéis que podemos usar a expressão “viver a personagem” de forma literal ao nos referirmos a essas irmãs. Não que elas possuam características que as individualizem, pois são meros símbolos do que era ser mulher na época. No entanto, elas são questionadoras do “status quo”. Principalmente Guida, a mais velha, à frente do seu tempo e representando tão bem essa transição de costumes, que foram se perdendo na geração de imigrantes para dar lugar a pequenos lampejos de emancipação que a tornam uma protagonista forte, inquisidora, e perfeitamente plausível. Ela é tão boa que nos faz desejar que ela existisse, mas tão dolorosamente real que ficamos felizes por não.

A mensagem social mais importante do filme, que não se priva de também ser um melodrama de qualidade, é nos fazer refletir sobre o erro que é pensarmos que todas as mulheres viviam satisfeitas naquela sociedade simplesmente por costume, sem questionar nem querer uma vida diferente. Sem apelar para discursos feministas inflados, que correriam o risco de afastar o espectador mais conservador, o filme sugere de maneira sutil, mas inquisidora, que talvez a maioria das mulheres, diferente dos homens da época, não agisse por costume, mas simplesmente porque não tinha outra opção. Surge daí a função primordial do longa em elevar alguns exemplos dessas mulheres na superfície para enxergarmos melhor as correntes que as prendem.

Além de uma aventura dramática de época que nos faz viver aqueles momentos como se fizessem parte de nossa própria vida, há no final uma participação especial de Fernanda Montenegro, que com tantos anos continua um monstro de atuação, e o faz com tão poucas expressões e uso de voz que suas poucas cenas no filme emocionam tanto pela história quanto pela beleza intrínseca na forma de Montenegro trabalhar. Uma das melhores atrizes de sua geração, sem lançar spoilers, posso dizer que ela continua representando o Brasil que queremos ver, aqui e pelo mundo, através das décadas que virão. É a brasilidade que não se imita, e nem se arranca de ninguém.

As qualidades de A Vida Invisível são difíceis de ser atribuídas individualmente, mas o roteiro naturalista é arrebatador em usar a narração das cartas de uma irmã para a outra como marcador de tempo e momento na vida de uma, e a direção mais ainda em não forçar nenhum corte artificial que prejudicaria o fluxo do tempo. E quando cortamos de um ano a outro, ou avançamos 50 anos à frente o eficiente efeito acaba sendo o mesmo: nos faz pensar no que mudou. Resta ao espectador que sair do filme refletir a respeito. Principalmente as mulheres.


“A Vida Invisível” (Bra/Ale, 2019), escrito por Murilo Hauser, Inés Bortagaray e Karim Aïnouz baseados no livro de Martha Batalha, dirigido por Karim Aïnouz, com Fernanda Montenegro, Carol Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier, Marcio Vito, Flavio Bauraqui, António Fonseca, Bárbara Santos, Maria Manoella e Cristina Pereira.



Trailer – A Vida Invisível

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