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A Garota Na Névoa | Como pode a injustiça ser tão glamourizada?


[dropcap]U[/dropcap]ma garota desaparece em meio à névoa. Surge um inspetor em cena e começam as investigações, sob aquela trilha sonora dramática que todos conhecem. Aliás, alguns thrillers policiais costumam cheirar a clichê desde o primeiro momento até seu final. A Garota Na Névoa não é exceção.

Porém, o diretor/roteirista/romancista Donato Carrisi sabe disso e usa esses clichês de maneira distorcida, chamando nossa atenção para detalhes que não costumam ganhar o foco nessas histórias. E é isso a grande reflexão que o filme nos tem a oferecer.

Passado em uma pequena vila em um vale na Itália, e graças ao céus, falado em italiano e não “dublado” no famigerado inglês (para as plateias que não gostam de legenda), o que aumenta o realismo e a coerência da história, toda a trama segue aquele fluxo que conhecemos: a mídia escavando detalhes do suposto crime, a população e a família em comoção constante e a polícia mantendo o ritmo conforme o que lhe é esperado: entregando novidades para todos em um ritmo que faça sentido.

No topo dessa cadeia reside o Inspetor Agente Vogel, que nas mãos do ator Toni Servillo (A Grande Beleza) cria um sujeito que, em seu início, detalhista e vestindo um casado sisudo, faz lembrar os grandes detetives da literatura, mas que, aos poucos, vai se transformando em um mero manipulador de informações. Marcado no passado por um caso conhecido como “O Mutilador”, onde ele recolheu indícios que incriminaram um inocente que ficou quatro anos na prisão, Vogel é o cínico da pior espécie, pois é distraidamente charmoso e inabalável frente às câmeras, o que lhe dá um crédito que nós, observadores por detrás do palco, sabemos que não lhe pertence. Vogel veio de um filme noir como A Marca da Maldade “turistar” em um thriller que não parece muito interessado por justiça. É um “match” perfeito.

A Garota Na Névoa Crítica

Isso por si só já seria um tema incrível de ser explorado em um filme: o poder da mídia como carro-mestre das investigações em vez da verdade. E de fato boa parte do filme é sobre isso, muito embora fique claro que o livro deve possuir muito mais detalhes enriquecedores de alguns personagens que são simplesmente citados de passagem, como as pontas de um admirador secreto da garota desaparecida com um passado traumático e de uma jornalista velha conhecida de Vogel e suas trocas de favores por motivos vagos que residem no passado. Mas não importa. Ciente que não é possível resumir 400 páginas em 90, o escritor Donato Carrisi entende que precisa podar as partes menos relevantes, embora mantenha a essência: o sistema é corrupto desde seu núcleo, e a justiça é um mero detalhe burocrático que pode ou não acontecer.

Isso fica extremamente latente quando surge em cena o professor de literatura Loris Martini (Alessio Boni), que por não ter um álibi para a noite do ocorrido e por seu carro aparecer na hora errada em frente a uma câmera, vira o suspeito número um do caso. A sacada do filme, no caso, é não nos deixar saber a verdade, pois enquanto acompanhamos o circo que se forma na TV, para crucificar o professor (e consequentemente sua família), por antecipação não sabemos se esse é um castigo merecido ao sujeito ou não. E, de acordo com o sempre cínico Vogel, isso não importa.

Aliás, todas aquelas velhas figuras parecem estar tão acostumadas a esse jogo midiático onde o que vale é extrair lucro do processo que sequer entendem quando alguém sugere que, talvez, fosse interessante se o principal motivo de dezenas de pessoas estarem mobilizadas na investigação fosse a busca da verdade para assim fazer justiça. E mais uma vez a virtude do agora diretor Donato Carrisi é nos fazer prestar atenção mais ao processo do que no mistério de fato. O filme poderia acabar sem respostas, que já o faria, por si só, um thriller instigante por nos tornar imersos nesse mar de lama. Lembra um pouco Garota Exemplar, e talvez não seja coincidência que ambos os filmes tratam não de mulheres desaparecidas, mas dos que estão presentes no processo de busca.

Mas não se engane: haverão reviravoltas. Mais de uma. Esse ainda é um thriller clássico, apesar do filme parecer brincar com os clichês, utilizando, inclusive, uma trilha sonora extremamente batida de Vito Lo Re para toda a produção, mas que não se priva de ter personalidade, com até um tema reconhecível nos créditos finais. Porém, note a música-tema que destoa de todo o resto: Dança da Solidão. Interpretada pela inesquecível Beth Carvalho, a letra fala sobre solidão e desilusão, e é justamente esses os sentimentos que o espectador terá em notar que esta é uma história tristíssima. Tristíssima e belíssima. Como pode a injustiça ser tão glamourizada?


“La Ragazza Nella Nebbia” (Ita/Ale/Fra, 2017), escrito e dirigido por Donato Carrisi, com Toni Servillo, Alessio Boni, Lorenzo Richelmy e Jean Reno

Trailer – A Garota Na Névoa

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