A Casa | Delírio sem cortes


[dropcap]E[/dropcap]xistem dois jeitos de analisar o filme uruguaio A Casa, um que não estraga nenhuma surpresa, e nesse a única coisa que se pode dizer é que a produção dirigida por Gustavo Hernandés, sobre um pai e uma filha que são contratados para limpar uma casa velha, porém escutam um barulho no segundo andar e entram em uma noite de terror, é que ele é uma experiência eletrizante e impressionante, que, entretanto, não pode ter seu maior valor analisado sem estragar aquelas surpresas já citadas.

Por isso, se você não viu o filme, veja, se já viu, continue.

Talvez não interesse para o espectador saber que o filme todo fora filmado usando uma máquina fotográfica Canon EOS 5D Mark II, nem que tenha custado quatro milhões de dólares e sido feito em quatro dias, muito embora, sem dúvida, todos conseguiram perceber que A Casa foi feito em um único plano, sem cortes e essa combinação toda acaba então mostrando que, mais que um simples terror, o filme de Gustavo Hernandés acaba sendo um trabalho, quase, irretocável em termos técnicos.

Quase, pois Hernandés, em certos momentos do filme, não consegue fugir de trapacear seu espectador, fazê-lo ver a figura que parece ameaçar a heroína, o que faz o público, mesmo que por um segundo, acreditar no lado concreto de tudo aquilo, afastando-os do conflito psicológico da personagem, já que ele sabe que, a partir da revelação final, o filme deixa de sobreviver diante do suspense e do clima criado.

Por outro lado, a câmera do diretor escolhe o caminho mais interessante, já que (a não ser nesse momento citado, onde ela, escondida embaixo de uma mesa vê o “assassino” entrar naquele cômodo) faz questão de seguir a vítima, dar ao seu espectador a oportunidade de sentir aquela situação e viver aqueles momentos. Mais que acompanhando a protagonista, Hernandés faz do espectador a vítima daquela situação, mesmo que, para isso, de modo sutil e cheio da propriedade de saber em que terreno está pisando, mude o ponto de vista para a verdadeira vítima assim que a heroína passa a ser a vilã (que de modo mais hábil ainda, acaba então tendo seus atos todos “aceitos” pelo espectador quando, ao fim, encaixa todas as peças desse quebra-cabeça).

É verdade que, até de modo esquemático, Hernandés não esconde nada, não mostra o “assassino” de cara e, de modo poderoso, dá ao espectador a chance de entender tudo que está acontecendo desde o começo, já que não economiza nas dicas. Que na verdade acabam mostrando, mais ainda, o controle narrativo impressionante em que A Casa se sustenta. Do mesmo jeito que tem certeza de contar com seu público para criar essas cenas horrendas apenas com ruídos (já que todos sabem o barulho de uma lâmina em ação e de um corpo sendo arrastado) e, tampouco, desperdiça um ou outro movimento de câmera e composição “clichê” do gênero, que faz todos no cinema gelarem a espera do susto (que, obviamente não acontece e mostra a segurança de seu trabalho).

Mas A Casa não é só um exercício de “quase sustos”, eles estão lá, justamente para jogarem o público do cinema nessa experiência em que, aos poucos, vai, mais e mais, se perdendo dentro dessa personagem psicologicamente destruída, que descobre ser mais fácil criar todo essa situação dentro de sua cabeça para no fim de tudo poder “queimar” seu passado.

E com isso na cabeça que Hernandés pega o caminho oposto do, também ótimo francês Alta Tensão (que tem uma reviravolta semelhante), mas em nenhum momento parece preocupado em ser sincero com seu espectador, já que cria esse assassino de macacão que persegue as duas moças. Aqui, em A Casa, Hernandés a todo momento faz a protagonista encarar o verdadeiro vilão, seja no momento em que descobre um quarto cheio de pinturas sem rosto e sem personalidade ou nas inúmeras vezes onde ela dá de cara com um espelho.

Se na história do cinema os espelhos estão lá como uma obsessão de diretores para “quebrarem” essa quarta parede, e tentar sumir por trás dos reflexos de seus personagens, aqui Hernandés faz deles (além de demonstrar um mais que competente trabalho de marcação, em razão de não ter cortes) a ferramenta para mostrar a realidade, já que é a partir deles que o espectador tem a oportunidade de enxergar o vilão (propriamente dito). É importante ainda lembrar que, mesmo no momento em que tenta “enganar” com a presença física de um vilão não, esquece disso e coloca a protagonista de frente para um espelho e deixa apenas o espectador enxergar as pernas do que “parece” ser outra pessoa, já que ela somente se vê.

Filme A Casa

Hernandés ainda cria essa experiência inquietante ao mexer com aquele desejo oculto de cada um pelo ilegal, por se sentir obrigado a ir nesse segundo andar a partir do momento que lhe é proibido tal ação. Como se dentro do espectador ele tivesse a certeza de que é ali onde mora a verdade, com aquela escada sendo o limite daquela realidade enquanto o mundo “visível” permanece recoberto por esse manto de escuridão. Isso fica mais claro ainda quando, antes de entrar na casa, a protagonista parece perdida na visão da janela do segundo andar.

E se no começo de A Casa uma frase aponta tudo aquilo que vem a seguir como baseado em fatos reais, em nenhum momento o roteiro escrito pelo próprio diretor em parceria com Oscar Estévez e Gustavo Rojo se sentem forçados a, eles próprios, buscarem a realidade, mas pelo contrário (já que ao final afirmam que a mulher, depois disso, não foi encontrada), preferem ligar, eles próprios, os pontos e contar o que aconteceu naquela casa que, no título original, é muda, pois nem ela tem o poder de contar o que aconteceu dentro dela naquele dia.

Por outro lado, ainda que se sintam obrigados a continuar o filme com uma espécie de cena pós crédito que, mesmo carregada de emoção, parece existir apenas para não deixar dúvidas (e por que não, mastigar toda essa verdade) para o espectador, por sorte esses mesmo acabam ganhando com A Casa uma experiência inquietante, ao mesmo tempo que têm a oportunidade de dar de frente com um filme tecnicamente preocupado em entregar algo diferente, mesmo que, como na cena da câmera Polaroid, seja por um flash de genialidade e coragem sequer. De tentar contar uma história de um modo que ninguém jamais fez, senão dentro do cinema em geral (já que não é o primeiro filme composto de apenas um plano sequência, vide exemplos como A Arca Russa e, por que não, os planos longos de Hitchcock em Festim Diabólico), pelo menos o faz dentro de um gênero conhecido por, justamente, prezar sempre essa vontade de se reciclar.


La Casa Muda (Uru, 2010), escrito por Oscar Estévez, Gusyavo Hernández e Gustavo Rojo, dirigido por Gustavo Hernández, com Florence Colucci, Abel Tripaldi e Gustavo Alonso


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8 Comentários. Deixe novo

  • Vinicius Carlos Vieira
    22/04/2020 10:02

    Isadora… faz bastante tempo de vi o filme, não lembro da cena pós crédito. Se quiser trocar mais ideia sobre o filme me procura no twitter @vinicvieira, até se for o caso para me falar sobre o final… mas pelo que eu me lembro, o filme é sobre ela enlouquecendo pela culpa, num é isso? Então teoricamente ela fez tudo, mas projetou isso com tendo sido feito por uma presença misteriosa, que na verdade era ela mesma. Confere?
    Abraços e pode me dar um toque lá do Twitter que a gente estende a conversa…

  • O pós créditos seria uma cena final contínua do filme? Já que mostra o porquê de Laura nunca se assustar com a garota fantasma, o “apagamento” de seu crime e sua partida para o sumiço? Ou na verdade revela que nada daquilo aconteceu, justamente por Laura ser uma personagem perturbada?

    Gostaria de saber sua opinião sobre o assunto. Estou lendo várias críticas do filme pra um trabalho da faculdade, e adorei a sua! Parabéns

  • Muitos não entenderão o filme, de fato, é muito sem sentido a sem nexo, principalmente sobre a personagem. Mas até que gostei, quer dizer, tirando o fato do filme ser baseado em fatos reais, ele até que foi legal. A história é meio louca e quando chega o final, é mais doido ainda. Quando soube que era baseado em fatos reais, pesquei sobre o caso e digo que não poderia ter um final diferente, já que a garota nunca foi encontrada e que o caso foi arquivado. No final você fica intrigado e curiosa pelo que de fato aconteceu, e qual real motivo pra ela ter feito isso.

  • Vinicius Carlos Vieira
    22/01/2012 12:43

    bom Tony, preciso me corrigir aqui, realmente “A Casa” não foi feito com um plano, mas sim com dois, coisa que ainda torna o exercício impressionante em termos tecnicos… e quando comparo com “A Arca Russa” é apenas em relação a plano sequencia, nunca em relação a enormidade desse em relação ao uruguaio… e sim, a imagem é bem pior, o filme inteiro tem apenas tres personagens (um quarto se levar em conta a garotinha) e muito menos recursos que o “Arca Russa”, o que não tira seu mérito…. e sim, é necessário fazer um filme com um plano só com pouco dinheiro, o problema é sustentar a narrativa, por que no resto do tempo é só apertar o rec (e não que essa mistura dê um filme bom, mas dá um filme)….. e não, esses 82 (no caso essas duas partes) não foram filmados uma única vez, nem o “Arca Russa” foi, além de todo ensaio aquilo foi repetido até chegar no reaultado final (Arca Russa se não me falhe a memória foram quatro vezes… posso estar errado)…
    sobre a manipulação, em “A Casa” ela não se faz pela “único plano”, mas sim em termos de linguagem, coisa que em certos momentos até enfraquece o roteiro, já que insiste naquilo ser uma história real (tentando levar o público a se aproximar mais ainda da história) e, por exemplo, em certo momento chegar até a mostrar os pés de um suposto assassino (bem no momento em que, talvez, muitos dos espectadores pudessem começar a desconfiar da não existência de tal personagem) é sim manipular… não so o corte influência o olhar, mas sim, muito mais que ele, todo jogo cênico o faz com mais força ainda, e nisso leve em conta todos detalhes tecnicos, todo posicionamento da câmera (diminuindo ou aumentando o personagem em relação ao problema etc etc etc) todo movimento, luz, cores, música etc etc.
    é lógico que a ideia do plano sequencia é aproximar aquilo da verdade, mas na verdade ele aproxima aquilo da verdade do diretor…. um plano longo (que não é plano sequencia, já que se mantém fixo) que mostra a “verdade” é a entrada dos funcionários na fábrica dos irmão Lumiere, o resto é tudo manipulado (risos)…

    PS: e Tony, muito obrigado por manter essa discussão que, quem sabe, deva estar ensinando um ou outro leitor do site um pouco mais sobre cinema… e parabéns por sua opinião abalizada

  • Tony D' Cesar
    22/01/2012 0:54

    Bem, no que diz respeito a “Arca Russa”, você realmente tem razão, tinha esquecido (inadmissível para um cinéfilo como eu, confesso!). Mas meu equívoco termina onde o seu começa.
    Alexandr Sukurov – diretor de “Arca Russa”, idealizou seu projeto inovador durante 15 anos; utilizou mais de 2 mil figurantes; ensaiou cada detalhe à exaustão durante oito meses para só a partir daí filmar “Arca Russa” com uma câmera digital de alta definição muito superior à usada em “A Casa”. Em um único dia, obviamente, ele filmou, depois de muito tempo e dinheiro ter sido empregado no ousado projeto.
    Entenda uma coisa, para se alcançar um feito dessa magnitude, é necessário bastante recurso($$$$$$$), tempo, material humano e experiência, e como poucos tem tudo isso a disposição, volto a afirmar que tal tentativa torna-se inviável para a grande maioria. Como é o caso do Gustavo Hernández, coitado, que está longe de se enquadrar no perfil necessário para produzir um filme numa única cena, e a tentativa dele com o plano-sequência é engolida apenas pelos olhares menos atentos.
    Manipulação cinematográfica é de fato redundante somente nos filmes que assumem os cortes. Agora como pode ser redundante num plano-sequência, onde a idéia central é evitar influenciar o olhar do espectador?
    Sua insistência em acreditar que um longa de 82 minutos foi filmado numa única cena me faz crer que seu raciocínio lógico é meio falho, pois como você mesmo disse, os detalhes da produção foram divulgados de cabo a rabo e por conta disso, sabemos que as gravações duraram quatro dias, fato esse que desmente toda essa história, a não ser que o filme tivesse 48 horas de duração.
    A título de informação, te afirmo que não perdi oportunidade alguma, pois assisti ao filme e até achei razoável, mas não sou muito fã de promessas não cumpridas (a sinopse do filme vendia a idéia do plano-sequência), por isso, faço valer a minha crítica.
    Finalizo da mesma forma que iniciei o comentário anterior, pois Caro Vinicius C. Vieira, você, assim como muitos outros, caiu no conto da carochinha.

  • Vinicius Carlos Vieira
    21/01/2012 20:14

    vamos lá Tony.. algumas explicações para você, Sim Casa Russa foi sim feito em um plano só, o que logo de cara mostra que é sim viável tal “experimento”… segundo, Festim Diabólico é pensado para ter um plano só, estruturado etc, só não teve pois Hitchcock tinha contra ele o tamanho dos rolos de filmes na época, que não eram grandes suficiente para captar os 80 minutos do filme, o que obrigou o diretor a esconder seus cortes (como nas costas de um dos persoangens)… no caso de A Casa Muda o plano sequencia não aparece como mais que uma oportunidade de criar o suspense e retratar o que aconteceu naquela casa em 70 e poucos minutos corridos, e se não foi feito em um plano único até agora ninguém conseguiu provar nada, já que eles não teriam por que esconder isso em uma produção tão aberta como foi essa, onde foi divulgado tudo de cabo a rabo, quanto custou que camera era (no caso era uma fotográfica, uma Canon EOS 5D) etc… e por último, “manipulação cinematográfica” em termos de filmes de terror é quase redundancia, já que o genero só existe para manipular o espectador… então Tony, eu acho que quem foi enganado foi você, e com isso acabu perdando a ótima oportunidade de aproveitar um filme mais que interessante ao invés de ficar procurando cortes onde não existem…

  • Tony D' Cesar
    21/01/2012 17:11

    Caro Vinicius C. Vieira, você, assim como muitos outros, caiu no conto da carochinha.
    Esse longa tentou passar ao público a sensação de que o filme teria sido filmado em um único plano-sequência, e assim, proporcionar uma percepção aproximada a da protagonista.
    Mas em termos técnicos, essa proposta é inviável, já que se pode esconder os cortes através do jogo de câmeras e pela iluminação, e dessa forma, ludibriar o público fazendo-o comprar a idéia proposta. Em suma, esse filme, assim como os outros citados anteriormente por você, vendeu bem a idéia do plano-sequência, mas não se deixe enganar, tudo não passa de mera manipulação cinematográfica.

  • Inicialmente tenso e até assustador, porém um final totalmente desconexo… sem sentido…

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