Não se enganem com os exagero que apontam 12 Anos de Escravidão como um filme obrigatório, principalmente pois essas afirmações não são um exagero. Muito pelo contrário até, são o modo mais simples de tentar resumir o que é o novo filme de Steve McQueen (do tão ótimo quanto esse, Shame).
Mas tampouco achem que 12 Anos de Escravidão é obrigatório pelo retrato doloroso de um caso tão absurdo que tem o poder de deixar perplexo qualquer um que der de frente com o filme, ele talvez seja mais obrigatório ainda por ser um daqueles exemplos de até onde pode chegar o cinema. Tanto em termos de sensibilidade quanto de técnica e linguagem, se é que é possível separar cada um deles.
A história é sobre esse negro livre, Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) que mora tranquilamente em algum lugar de Nova York lá por meados do século XIX (antes da Guerra da Secessão e do fim do regime escravista no Estados Unidos). Ele, com sua esposa e dois filhos, diante das palmas de todos por ser um exímio violinista o respeito de uma porção da sociedade à frente de seu tempo. Isso, até que acaba caindo na armadilha de dois contrabandistas e é levado para Nova Orleans como escravo.
E do mesmo jeito que McQueen penetrou na alma do atormentado personagem de Michael Fassbender em seu filme anterior, o diretor agora faz o mesmo com uma situação. Não somente com seu protagonista, mas com tudo que acontece nesse tempo todo que dá nome ao filme. 12 Anos de Escravidão é então essa tentativa de entender o que leva uma sociedade a tamanha atrocidade, assim como olha bem nos olhos de quem parece conseguir viver diante disso. Ao mesmo tempo em que esmaga esse homem livre em um situação que o reduz não só a mercadoria, mas a algo com menos importância ainda. Um arremedo de ser-humano.
McQueen então parece interessado não só pelo sofrimento do personagem (que não é pouco), mas mais ainda por sua força. Como se inspirado por isso fosse em busca não só de uma ou outra imagem poderosa e chocante (como as costas açoitadas de uma escrava), mas do incômodo de tentar entender até onde vai esse sentimento de sobrevivência que o personagem central tem.
Uma inspiração que se transforma em imagens enquanto observa o mesmo “semi-enforcado” em uma árvore e deixa o cinema quieto enquanto vê o “resto do mundo” ao redor dele continuar suas vidas e dar as costas para isso. Até onde vai essa vontade de sobreviver? E quanto demora para que esse incômodo aplaque o espectador?
A primeira pergunta talvez seja respondida mais tarde, com o protagonista se rebaixando ao papel de agressor afim de não perder ele próprio sua vida. A segunda talvez seja um pouco mais complicada, mas McQueen ainda assim tira de letra.
E o faz com um propriedade técnica e artística impressionante. Que começa tirando da linearidade esses dois momentos do protagonista, criando esse incomodo visual entre a figura imponente e feliz do homem livre e o resto de ser-humano escravo, trabalhando sob o sol e a visão do capataz, dormindo em qualquer pedaço de chão amontoado de mais um monte de escravos e quase se deixando sair do próprio enquadramento do filme, como se não fosse homem o suficiente para estar ali. Northup então perde a liberdade, a identidade (coberta pela sombra do cativeiro dos traficantes), as roupas, o nome e enfim a dignidade, exposto como mercadoria em uma espécie de “loja” em que McQueen, tremendamente hábil, trata o monte de negros espalhados e imóveis como estátuas. Como algum mise-en-scene do cenário. McQueen então provoca seu espectador a não desviar o olhar enquanto mostra a brutalidade emocional da situação. Opção muito mais dolorosa do que feridas abertas.
Um incômodo que o diretor o faz ficar maior ainda por tratar ambas três cenas citadas acima sem cortes. Sem subterfúgios de montagem algum. Somente a dor daqueles homens destruídos por essa sociedade. E é assim que o diretor delimita sua trama, com um trio de momentos sem cortes em que seu “herói” nasce como escravo, quase morre e, enfim, se rebaixa ao menor lugar que conseguiria chegar: na ponta do chicote que açoita. E esse cuidado estético perdura por todos outros momentos do filme, tanto em termos de composições eficientes, equilibradas e sensíveis, como no modo como sempre vai em busca de seu protagonista. Afinal é o sofrimento dele que o cinema precisa encarar.
Como quando encara Ejiofor deixando para trás os negros sendo enforcados ao invés de investir da dolorosa situação. Para McQueen, a “dor pela dor” parece ser um caminho fácil demais a ser percorrido. Então sua busca é por fazer o espectador tentar desvendar o olhar de Solomon enquanto parece buscar algo fora do enquadramento, perdido, como se não soubesse nem o que estava procurando. E a dor de ter que encarar, lá para o fim do filme, esse par de olhos é pior do que qualquer cena chocante, sangue ou enforcamento. É a dor da verdade. Da culpa.
E isso é o reflexo direto dessa imersão na qual 12 Anos de Escravidão coloca seus espectadores. Tanto pela história impressionante por si só, quanto pelas atuações principais e coadjuvantes (por menor que seja, cada um que aparece na tela dá um show) e ainda, mas não menos importante, por um trabalho sensacional de Hans Zimmer em uma trilha sonora que não só embala o filme, como acompanha o protagonista em um misto de sons diegéticos que ganham outros planos e parecem acolher o filme com uma exatidão e uma coragem pouco vista no cinema atual.
Uma mesma coragem que combina perfeitamente com o Solomon. Uma coragem de sobreviver. E McQueen não só é sensibilidade o suficiente de perceber isso, como, em mais um momento de coragem, fez questão de esfregar na cara de todos que entrarem no cinema aquela culpa de um parágrafo atrás. Isso e a impressão de que “12 Anos de Escravidão” é obrigatório, já que ninguém está livre de aprender com os erros do passado, ainda que muita gente continue sem perceber isso. Infelizmente.
12 Years a Slave (EUA/RU, 2013), escrito por Solomon Northup (livro), John Ridley, dirigido por Steve McQueen, com Chiwetel Ejiofor, Paul Giamatti, Benedict Cumberbatch, Paul Dano, Michael Fassbender, Sarah Paulson, Lupita Nyongó e Brad Pitt