Um Toque de Pecado

Talvez mais difícil que fazer um bom filme, seja fazer um filme onde absolutamente tudo esteja em seu lugar, como um quebra-cabeça depois de pronto, onde ainda se vê as bordas de cada peça, mas faz ser impossível não enxergar a imagem Um Toque de Pecado postermaior. Um Toque de Pecado pode até ser sobre essas pequenas histórias, mas na verdade busca uma imagem muito maior, e faz isso sem deixar absolutamente nada fora do lugar.

Na verdade, são quatros histórias que parecem acontecer em províncias afastadas da China e que soam ligadas em um primeiro momento pela violência ou por uma espécie de imposição econômica que move a todos. Tanto o trabalhador de uma mina (Wu Jiang) em busca de justiça, quanto um pai de família (Baoqiang Wang) que parece não saber fazer outra coisa a não ser usar violência semelhante para viver, ou a atendente (Tao Zhao) de uma sauna humilhada que toma a decisão mais sangrenta e, finalmente, o jovem oprimido (Lanshan Luo) por essa sociedade que acaba tomando um caminho mais simples.

E se tudo isso pareceu genérico é única e exclusivamente para evitar qualquer tipo de spoiler antes de deixar claro que “Um Toque de Pecado” é um daqueles filmes que são obrigatórios à todos que tiverem a chance de “topar com ele” por ai. E isso fica mais claro ainda por ser impossível tratar suas qualidades sem esbarrar em sua complexidade e, consequentemente, em muitos spoilers (a partir de agora…).

Uma complexidade que liga essas histórias por tantos detalhes que ao final do filme acaba sendo impossível não ficar digerindo-o por horas, e melhor ainda, ir ganhando um novo e mais empolgante filme a cada lembrança. Um filme que recorre as “boas e velhas” frutas de “um certo filme de máfia” para delimitar a culpa de cada um dos personagens, abrindo o filme com o primeiro protagonista manuseando um tomate diante de um caminhão tombado deles, prevendo o massacre que ocorrerá por suas mãos, mas que de certo modo foi inspirado por uma ação do personagem central desse segundo segmento, que mais tarde descasca uma maçã de modo hipnótico, frio e calculista. Do mesmo modo que manuseia sua arma e ganha sua vida.

E em um terceiro momento, é justamente uma faca para descascar frutas que muda a vida dessa mulher presa entre sua vida monótona e a promessa do amante de largar a família para ficar com ela. Uma pequena faca que a livra da dúvida e da esperança de ter uma nova vida, mas também serve de arma contra a opressão e contra o vórtice de violência no qual ela acaba sendo sugada. E por fim, um jovem que não consegue encarar a verdadeira natureza de seu amor enquanto, serve uma bandeja de frutas.

Um Toque de Pecado Filme

Indo mais longe ainda, talvez seja o contato direto com a fruta que dite a complexidade desses atos de violência, já que enquanto esse último não encosta nelas, acaba afastado da violência, renegando-a e, por fim, usando-a apenas contra ele mesmo. E isso talvez crie uma escala que pontue o filme e se torne um daqueles detalhes que farão todos terem vontade de voltarem ao cinema. E quando fizerem isso, ainda terão a oportunidade se refastelarem com muito mais coisas ainda.

Isso, por que é obvio que essas camadas não se resumem a algumas frutas, e passam pela óbvia violência como resultado iminente e chegam na, não menos óbvia ainda, opressão diante do dinheiro e de uma sociedade (chinesa) que obriga cada vez mais todos a serem escravos desses cifrões.

Um problema que move a primeira história e esse cara que, no final das contas, só está em busca de justiça, que se viu jogado em um canto da sociedade enquanto seu colega de escola enriqueceu, mas deixou a impressão em todos de uma conta que não fecha. Seja do carro importado, seja do avião ou até dos capangas que se encarregam de “resolver o problema” e depois “calar as bocas” com um monte de dinheiro. Um bloco de dinheiro que acaba sendo semelhante àquele que humilha a protagonista do terceiro segmento (humilha ela e todo o resto do cinema) e que, diante disso, tem quase a mesma reação do primeiro. Ainda que o sorriso dele ao final da matança seja bem diferente do arrependimento dela, o que até lhe dá uma segunda chance mais para a frente.

E enquanto esse primeiro personagem olha no espelho segurando sua arma, assim como um tal de Travis Bickle, no exato momento que (ambos) descobrem que não há outra saída, se tornando uma espécie de herói das mazelas, cobertos de sangue e com o olhar perdido, mas deixando na plateia a impressão de terem libertado, pelo menos, um “escravo” (lá em Taxi Driver uma prostituta, aqui um cavalo, que segue em seu caminho). E essa impressão de justiça é justamente o que foge da segunda história, onde seu protagonista encontrou na violência (e nos “americanizados” capuz do Chicago Bulls e a busca por um “arma de recarga rápida”) o modo de independência e de poder voltar para sua terra natal com o orgulho de não precisar de nada para cuidar de seu filho.

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É justamente essa opressão diante do dinheiro, das oportunidades, e do esforço para fugir disso, que move o mais jovem dos protagonistas (na verdade os protagonistas seguem uma escala de idade) em seu destino, que, tragicamente resolve o problema dele e, assim como nas outras pequenas histórias, é o caminho mais simples e por isso, talvez, o mais condenável. E nesse momento surge uma outra camada que liga mais ainda essas histórias tão (aparentemente) desconexas.

Cada um desses momentos acaba condenando ou abrindo portas para o que se segue, apontando o dedo do homem trabalhador que sempre escolheu o caminho mais justo, que se faz juiz com sua espingarda daqueles que encontraram o modo mais fácil de ganhar o dinheiro, que se torna um criminoso, mas não perde o senso de justiça. Bem distante daquele que faz da violência seu ganha-pão nesse segundo momento e justifica isso diante do tédio. Mesmo sentimento que move a terceira protagonista (assim como uma ligação emocional com seu celular, aparelho que é lembrado pelo anterior como sendo “mais perigoso que qualquer arma”). E se a depressão dessa mulher diante da humilhação, da violência e da perda do amor ainda assim a faz lembrar que é melhor “viver na mediocridade, do que se matar feliz”, parece prever o salto do último personagem em busca de seu fim.

Portanto, não há dúvidas que Um Toque de Pecado ainda tem muitas e muitas mais camadas a serem descobertas, detalhes e leituras, e isso só é possível graças ao trabalho do diretor e roteirista Zhangke Jia, não só por controlar perfeitamente o andamento dessas histórias aparentemente tão separadas, mas por, ainda por cima, fazer tudo isso com tremenda habilidade plástica. Um trabalho que, assim como as histórias, trata cada uma dessas possibilidades com sua própria veracidade e necessidades. Como se cada protagonista tivesse seu filme, seus planos característicos e seus elementos visuais recorrentes, além de um ápice visualmente impactante e inesperado que se assemelha a um tapa na cara que acorda qualquer um no escuro do cinema.

Portanto, Um Toque de Pecado é um quebra-cabeça complexo poderoso e obrigatório, senão para tentar entender esse cenário tão distante do ocidente, pelo menos por que precisa ser visto, sentido e discutido.


“Tian Zhu Ding” (Chn, 2013) escrito e dirigido por Zhangke Jia, com Wu Jiang, Lanshan Luo, Baoqiang Wang, Tao Zhao e Jia-yi Zhang


Essa crítica é parte da cobertura da Itinerância da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Trailer do filme Um Toque de Pecado

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