O Mau Exemplo de Cameron Post | Ainda dolorosamente atual


[dropcap]C[/dropcap]om a “justificativa” de que “odeiam o pecado, não o pecador”, muitas pessoas religiosas seguem acreditando que é possível que alguém possa verdadeiramente “salvar-se” da homossexualidade assim como um ladrão pode tornar-se um cidadão exemplar. Trata-se de uma lógica cruel e abusiva, responsável por infelicidade, opressão e solidão ou, nos casos mais graves, por suicídios. Se hoje ainda há pessoas que acreditam na “cura gay”, esse absurdo era ainda mais aceito na década de 90, época em que se passa O Mau Exemplo de Cameron Post.

A personagem-título (Chloë Grace Moretz) namora um garoto, mas, sem que ninguém saiba, fica também com uma garota de sua escola. Quando seu namorado flagra as duas juntas, os tios de Cameron (que a criaram desde que os pais dela faleceram) decidem interná-la em um centro de recuperação para jovens gays.

Adotando um senso de humor irônico e altamente crítico e fugindo do drama, o longa consegue destacar o quão absurdo é o conceito de um centro de recuperação desses sem deixar de abordar as consequências traumáticas que tal abuso psicológico tem. Assim, se a diretora do centro (Jennifer Ehle) é descrita pelos jovens como sendo “uma vilã da Disney”, ela demonstra uma frieza cuidadosamente calculada ao informar Cameron que ela não pode ser chamada por seu apelido, Cam, pois não pode deixar um nome já pouco feminino ainda mais masculinizado.

Enquanto é divertido ver Cameron, Jane (Sasha Lane) e Adam (Forrest Goodluck) plantarem maconha em uma floresta nos arredores do museu enquanto supostamente praticam caminhada, um esporte aceito no centro por ser “de gênero neutro”, Jane revela bem a completa falta de lógica por trás de tudo o que é infligido nos jovens ali dentro ao dizer, por exemplo, que a equipe do centro considera tanto receber tanto pouco quanto muito amor dos pais um dos motivos para que alguém “torne-se” gay.

A cada frase do roteiro ácido de Desiree Akhavan (que também dirige o longa) e de Cecilia Frugiuele, a partir do livro de Emily M. Danforth, há doses altíssimas de críticas a um sistema que faz, por exemplo, com que um jovem recorra à automutilação como tentativa de salvação, já que a equipe do centro, o tempo todo, joga nos adolescentes a culpa por seu “tratamento” não estar fazendo efeito. E, quando faz — como no caso do Reverendo Rick (John Gallagher Jr.), fica óbvio também o nível gigantesco de tortura psicológica que foi necessário para chegar nisso.

Na pele da protagonista, Chloë Grace Moretz abraça o estilo irônico e crítico do longa ao compor Cameron Post como uma jovem analisando cuidadosamente o mundo e as pessoas ao seu redor e quase nunca gostando do que encontra. A inexpressividade (da personagem, não da atriz) serve também como uma armadura em um lugar onde a hostilidade impera, mas também como símbolo de sua resistência. Moretz se sai bem também nos raros momentos de leveza da personagem, como quando ela e os amigos se empolgam ouvindo música na cozinha e Cameron entrega-se a uma performance entusiasmada de “What’s Up”, das 4 Non Blondes.

O elenco secundário também mostra-se homogeneamente eficiente, com destaque para Sasha Lane e Forrest Goodluck, os amigos mais próximos de Cameron no centro e que, ao lado dela, protagonizam a melancolicamente esperançosa conclusão do filme.

Vale destacar também que a diretora e roteirista Desirree Akhavan, uma norte-americana descendente de iranianos, é bissexual e imprime seu olhar feminino ao longo de toda a produção. As cenas de sexo de Cameron com outras garotas são filmadas com naturalidade, sem jamais tornarem-se sexualizadas. A maneira crítica com que Akhavan estabelece sua força diante daqueles que são contra a simples existência dela enquanto mulher bissexual é resultado das experiências dela, que aqui quando as telonas em mais um exemplo da importância de o cinema dar voz a uma gama diversificada de artistas.

O Mau Exemplo de Cameron Post é, portanto, uma obra segura do que quer dizer, altamente eficiente em sua proposta e que, ainda hoje, mostra-se dolorosamente atual.

Esse texto faz parte da cobertura da 42° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


“The Miseducation of Cameron Post” (EUA, 2018), escrito por Desiree Akhavan e Cecilia Frugiuele a partir do livro de Emily M. Danforth, dirigido por Desiree Akhavan, com Chloë Grace Moretz, Sasha Lane, Forrest Goodluck, John Gallagher Jr., Steven Hauck e Quinn Shephard.


Trailer do Filme – O Mau Exemplo de Cameron Post

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