Meu Amigo Enzo | Onde encontro um cachorro desses pra mim?


[dropcap]M[/dropcap]eu Amigo Enzo segue a tradição Disney de pequenas histórias de Sessão da Tarde que encantam pela leveza, simplicidade e conveniência. Tudo funciona na aventura da vida deste cachorro. Ele é o narrador de uma vida humana em que tudo no final deve dar certo e os percalços são necessidades para que seja feito um filme a respeito.

O motivo de nunca temermos pelo pior é porque este é um filme fofinho, que arranja novas maneiras de contar a velha história da família que passa por alguns problemas insolúveis (quem nunca) e por um piloto que evoca o espírito de Ayrton Senna, que encontra várias barreiras no seu caminho profissional, mas que sua habilidade de correr na chuva demonstra sua confiança no imprevisível. Nós também temos essa confiança, pois já sabemos como funciona um filme como esse: tudo vai dar certo.

Bom, como o final já está garantido, vamos dar uma olhada no processo. A história começa com um cachorro moribundo, morrendo no capacho da casa do seu dono. O cachorro é dotado de pensamentos filosóficos a respeito de sua vida e a do seu dono com uma sagacidade empolgante, uma sabedoria adorável e a voz de Kevin Costner. Ninguém pensaria duas vezes em poder ter um cachorro desses ao seu lado pelo resto da vida.

Ou pelo menos pelo resto da vida do cachorro, pois, como sabemos, eles vivem muito menos que humanos. E por isso o filme já nos apresenta seu inevitável fim e nos coloca no começo, quando ele é comprado. Enzo, como é batizado pelo seu humano, entra na vida dele em um momento-chave, Denny (Milo Ventimiglia), piloto e corrida e ainda solteiro. Em seguida, já em formato adulto, ele acompanha a chegada de sua companheira, Eve (Amanda Seyfried), com toda sua simbologia da primeira mulher.

A história segue sem maiores percalços, quando chega a filha dos dois e os dramas específicos dessa família perfeita que precisa que tragédias e conflitos sejam colocados pelo roteirista Mark Bomback, que adapta o livro de Garth Stein, que aparentemente tem em A Arte de Correr na Chuva seu único grande sucesso, e Bomback é um adaptador nato, tendo (re)feito trabalhos como O Vingador do Futuro e a nova série de filmes Planeta dos Macacos.

Este se torna um filme tocante e em alguns momentos tenso porque é isso o que esperamos de um filme que tem um cachorro narrador. Então acompanhamos alguns acontecimentos tocantes, outros tensos, mas nada disso se compara a esse cachorro analisando nossa realidade sob o prisma dos olhos de um canino, que dizem mais do que se ele pudesse falar, mas que pensa de uma forma apaixonante. Ele chama o sogro e a sogra do seu dono de gêmeos por aturarem em uníssono, em uma das muitas piadas espirituosas que saem da boca… ops, do pensamento de Enzo.

Poeta por vocação, o cão faz analogias sobre os medos da vida usando a chuva na pista de corrida. Meu deus, onde encontro um animal desses para mim?

Para quem possui animais, e eu digo de fato para suas vidas, e não como muletas de carência como têm sido usados cada vez mais, a resposta para “onde encontro esse animal” deve parecer boba, pois uma vez que você estabelece um laço com uma criatura dessas é como se você tivesse de fato um amigo, e ainda que não da mesma espécie, próximo o suficiente para termos empatia e conexão.

E como Marley e Eu e Meu Amigo Enzo tentam demonstrar, uma amizade entre um homem e seu cão pode adquirir significado com o tempo sem necessariamente nenhum truque além do convívio dia após dia. Afinal, somos animais sociais e os lobos, desde os tempos mais primórdios, são nossa versão menos consciente e mais confiável para a vida selvagem.

O motivo dos dramas e conflitos no filme serem tão artificiais possui um significado, também, pois o mundo onde a história se passa possui um viés ligeiramente religioso, ou pelo menos espiritual, com o objetivo de nos fazer sentir bem apesar das mortes que acompanharemos. Ele usa reencarnação como paz para o espírito, mas de uma forma muito sutil ele ultrapassa interpretações fechadas e adquire um ar mais metafísico.

O dono de Enzo é um piloto tão bom porque ele não vive no passado ou futuro, mas no presente. Cachorros são companhias eternas porque, não dotados da voz interior que ajuda e atrapalha, eles sempre vivem no presente, também.

Porém, apesar deste fato, para maior participação de Enzo suas falas refletem momentos que não testemunhamos, quando seu dono fala sobre o que é ser um piloto e coisas da vida. Seria estranho testemunhamos ambos, porque apesar do título brasileiro Enzo é o protagonista dessa história, e apesar de nenhum ser humano ter sido ferido durante as filmagens eles foram cobaias neste experimento de troca de protagonismo.

Essa versão narrada por um cão fiel e reflexivo é uma maneira eficaz de renovar filmes com o mesmo propósito da tradição Disney de histórias doces, sobre família e religiosidade, em que tudo vai ficar bem. E como não ficaria? Se pensarmos como vive um cachorro doméstico, há poucas coisas que reclamar. Talvez aquele momento da vida em que o dono se esqueceu de alimentá-lo por 48 horas seguidas. Momento esse que, como cachorro, ele nem deve se lembrar. Viver no presente é uma ótima mensagem que deveríamos aprender dos nossos companheiros caninos.


“The Art of Racing in the Rain” (EUA, 2019), escrito por Mark Bomback e Garth Stein, dirigido por Simon Curtis, com Kevin Costner (voz), Amanda Seyfried, Milo Ventimiglia.


Trailer do Filme – Meu Amigo Enzo

Continue navegando no CinemAqui:

DEIXE UM COMENTÁRIO

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Menu