Malévola: Dona do Mal | “Era uma vez…” de novo


[dropcap]P[/dropcap]ara fazer continuação de contos de fadas o “Era Uma Vez” se torna “Eram Duas Vezes”, “Três Vezes” e assim por diante. O limite é o momento em que o mundo criado para contar a mesma história infinitas vezes começa a colapsar diante do cansaço inevitável da plateia. Malévola: Dona do Mal é o segundo round do conto da Bela Adormecida reciclada que ganhou notoriedade graças à presença de Angelina Jolie no papel-título, mas que agora se torna uma atriz pequena para um tema maior e, seguindo os passos de seu antecessor, melhor explorado em seu design de arte digital do que em sua narrativa.

No primeiro filme, sobre revisionismo histórico, vilões foram desmascarados e Malévola foi reinterpretada de bruxa má para uma criatura apenas diferente, mas com boas intenções. Seu instinto materno justificava sua presença durante o sono eterno da Bela Adormecida (Elle Fanning). A desculpa totalmente esfarrapada para “Malévola 2” voltar ao ponto de origem vem logo na narração inicial do novo filme: as lendas vão sendo repetidas e aos poucos a população volta a acreditar no que elas dizem, o que quer dizer que a criatura de chifres e asas continua ou novamente é mal vista no reino dos humanos.

O único problema dessa explicação é que pouquíssimo tempo se passou entre um filme e outro, sendo improvável que todos envolvidos ignoraram por completo o que aconteceu. No fundo o que o filme realmente nos pede, ainda que educadamente, é ignorar como as peças voltaram à posição inicial do tabuleiro.

Mas depois que a partida recomeça ela se desenvolve com novos movimentos, alguns mais interessantes, iniciando com o pedido de casamento do príncipe “Tanto Faz o Nome” com Princesa Aurora, significando não apenas a união do casal, mas de dois reinos separados pelas diferenças do passado. Podendo ser a chave para paz entre as criaturas da floresta e os humanos, só há bons motivos para a união do jovem casal, mas a Rainha Ingrith (Michelle Pfeiffer) insiste em lançar indiretas para a mãe de sua futura nora, em provocações bem elaboradas, com subtexto político inclusive, que diverte enquanto assistimos, mas que em retrospectiva peca por não ser sutil e porque já vimos esse filme antes.

Esta é uma continuação que sabota toda a boa fé que o espectador colocou no original para explorar novos caminhos para a trajetória da criatura com dois chifres e um bom coração. Menos ambígua ainda do que era, a Malévola de Jolie é uma conquista estética admirável, seja pelos chifres desenhados para completar seu vestido negro e suas asas ou pela forma do seu rosto que continua as curvas nada suaves de sua forma robusta, exceto pelos seus seios, voluptuosos e que indicam um instinto materno pela sua filha de criação e que justifica todos os esforços que faz para dialogar em termos amigáveis com os humanos responsáveis por atrocidades cometidas contra as criaturas da floresta, mas que falha de uma maneira divertida e significativa quando não entende códigos básicos de conduta dos humanos, como iniciar papo furado.

Mesmo que esta seja uma nova história, ela é novamente sobre desentendimentos, e só é possível acompanhá-la porque sua direção de arte, que exige um trabalho digital colossal, nos transporta facilmente para a magia de dois reinos e criaturas mágicas, e é bom viver um pouco por lá. Não nos importa muito para onde toda a trama irá – até porque intuitivamente já sabemos – desde que possamos observar por mais tempo as diferenças entre as vestes e construções humanas, que priorizam o uso de metais, pérolas e figuras geométricas retas, e as criaturas da natureza, orgânicas, caóticas aparentemente, mas pertencentes a sua própria lógica de funcionamento.

Claro que por ser digital muito da magia se torna irreal demais, e o insistente uso do efeito sonoro quando algo mágico está sendo usado acaba banalizando os momentos que seriam importantes percebermos esse recurso. Da mesma forma, sua trilha sonora empolga, mas ela insiste tanto em comentar cada pequeno pedaço de emoção que acaba se tornando uma experiência angustiante, sem pausas, e logo vira barulho de fundo. Há captura de movimentos, de expressões e o uso de panorâmicas completas pelos cenários fantásticos, mas tudo muito rápido, impedindo que o espectador se maravilhe por cinco segundos em qualquer um dos trabalhos magníficos da equipe de artistas da computação. É como se todos os esforços precisassem priorizar sua história não muito original.

Angelina Jolie é uma atriz talentosa, e tem seus momentos inspirados no jantar com os noivos, mas aqui o diretor Joachim Rønning pede que ela apareça em muitas cenas sem falar absolutamente nada (ou nada que mova a história, pelo menos). Ficou claro que o roteiro de Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue (baseados na história icônica de Linda Woolverton) não prioriza seu personagem-título, e Rønning precisa então encaixar uma atriz milionária como Jolie onde for possível para justificar uma obra que analisada de maneira mais ampla envolve muito mais coletivos do que indivíduos.

Por falar em coletivos, é óbvio que há um subtexto político em cada novo detalhe que se desdobra sobre o conflito de dois reinos, o dominador e o subjugado. Esse subtexto já foi utilizado tantas vezes nessa década que hoje ele demonstra mais preguiça intelectual de seus idealizadores do que uma tentativa de oxigenar as ideias sobre o mesmo tema. Sim, nós já entendemos que só há perdedores em uma guerra e que temos que abraçar as diferenças. E, sim, esse é o slogan de campanha de apenas um dos lados do jogo: o lado que você concorda. Ainda assim, não é de todo mal algumas ideias que se inserem de forma orgânica, como um personagem baixinho que realiza pesquisas nefastas no subterrâneo do castelo.

E como vilões geralmente são mais atraentes, acompanhar os truques e artimanhas de Michelle Pfeiffer no papel de Rainha Ingrith é tarefa mais prazerosa do que admirar os revezes dos heróis. Pfeiffer é uma atriz maravilhosa quando se trata de ser ambígua e poderosa, mas se no caso de Jolie não havia nada para dizer, as falas de Ingrith são unidimensionais, pois não há oponentes à altura para um embate verbal. Há momentos em que seu sarcasmo é delicioso, mas ela os desfere mais como se estivesse atuando em um palco do que fazendo parte da ação, o que acaba sendo um problema para atores que veem fundos verdes no lugar de cenários por tempo demais.

Malévola: Dona do Mal acaba descambando eventualmente para a ação, que contém elementos interessantes, mas soa repetitivo por nunca interessar mais do que suas ideias iniciais sobre respeitar diferenças. Seu final se revela inevitavelmente esquemático, passivo, pois suas heroínas não estão sincronizadas na mesma página. Há personagens demais querendo espaço nos últimos minutos, talvez para permitir que lembremos de todos que voltarão em um possível “Malévola: Eram Três Vezes”, que é bem provável que eu veja ansioso. Há algo de mágico no visual computadorizado dos contos de fadas.


“Maleficent: Mistress of Evil” (EUA, 2019), escrito por Micah Fitzerman-Blue, Noah Harpster e Linda Woolverton, dirigido por Joachim Rønning, com Angelina Jolie, Michelle Pfeiffer, Elle Fanning, Harris Dickinson e Juno Temple.


Trailer do Filme – Malévola: Dona do Mal

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