Lucky Filme

Lucky | Harry Dean Stanton, David Lynch a vida e um cágado


No princípio não havia nada. Havia uma tartaruga. Não. Um cágado. O cágado segue andando em seu ritmo. Havia também um velho. E o velho também segue andando. Lucky é seu nome, e consequentemente seu filme. Porém, este é um filme que palavras se cruzam. E significados. Dessa forma, “lucky” em inglês quer dizer sortudo, o que pode querer dizer que este pode ser o filme sobre o que é ser sortudo. E do ponto de vista de todos nós que vivemos, estar vivo é ser sortudo.

Estar vivo é ter a sorte de testemunhar o último filme de Harry Dean Stanton com a presença do diretor David Lynch atuando. E você sabe que a coisa é séria quando vemos Lynch dizer: “existem algumas coisas no mundo que são maiores que todos nós… e um cágado é uma delas!”.

Você pode estar agora achando esta introdução longa e sem sentido. Mas sentido é algo que Lucky sabe que depende muito do ponto de vista. O velho todos os dias faz seu exercício de ioga, fuma cerca de um maço de cigarro e bebe leite, café. E álcool. Uma ou outra Bloody Mary. Seu médico não vê sentido nele fumar tanto e ter seus pulmões intactos. “É uma anomalia genética”, conclui seu “diagnóstico”. E o mundo do velho, todo certinho, agora tem um ponto cego: ele não sabe por que tem a saúde perfeita e um dia desses caiu no chão. E isso o faz ter medo. Basicamente é sobre isso o filme.

Agora você deve estar achando que não vai sair de casa para ver um filme que é sobre um velho e sua rotina. Ainda mais sabendo que não existe nenhum drama aqui em ser velho. Nem em ser sozinho. Lucky explica desde o começo com suas palavras cruzadas. Sozinho é estar consigo mesmo. Diferente de ser solitário. Ele aceita o significado da palavra realismo e seu resumo: “realismo é uma coisa”. Ou como pessoas incultas diriam: as coisas como elas são. Porém, note que as coisas como elas são para mim é diferente das coisas como elas são para você. Nas sábias palavras de Lucky, que precisam ser ditas em inglês: “what you see is not what I get”.

Você pode até não gostar de filmes lentos, mas este também possui alguns dos melhores momentos, diálogos e falas do ano. É o último filme do ator Harry Dean Stanton, que faz Lucky, a saúde de ferro, e faleceu três meses atrás, aos 91 anos, e o primeiro filme de outro ator de longa carreira, John Carroll Lynch. Através das palavras de dois atores em seu primeiro roteiro acompanhamos uma história que não contém muita tensão, conflito ou drama. Caminhamos pela rotina de Lucky algumas vezes porque é nela que encontraremos os ensinamentos, da mesma forma que acompanhamos a caçada de Anton Chigurh em Onde Os Fracos Não Têm Vez não pelo seu final, mas pelo que encontramos no caminho.

Lucky Filme

Repare como a atmosfera de Lucky nos entrega uma história realista, que pode estar acontecendo neste exato momento em qualquer cantinho desse planeta, ou desta galáxia ou universo, mas ao mesmo tempo ela (a atmosfera) está carregada de ensinamentos que vamos aprendendo aos poucos, e onde um causo sozinho não tem tanta importância se não for analisado pelo todo. É como quando Lucky senta-se na lanchonete que sempre vai com Tom Skerritt, que faz um veterano do exército. Ele se impressiona com a sorte do sujeito, que trabalhou em um navio-cargueiro sem nunca ser abatido na Segunda Guerra, e se impressionou também quando viu uma garota japonesa sorrindo para ele em uma história que revela o que estamos procurando neste filme que parece não ir a lugar algum, mas estar em todo lugar.

Pegue também, por exemplo, o sumiço da tart… cágado do vizinho, Howard (David Lynch). Ele se chama Presidente Roosevelt (o cágado). Ele surgiu do nada, não possui importância em si exceto pelas piadas com o presidente americano e pela óbvia analogia com o velho Lucky. E quando ele contrata um advogado para fazer o seu testamento, ou até para que o inconsolável dono faça um dos melhores discursos do filme, contando como o cágado carrega nas costas o seu próprio caixão. A forma com que coisas são ditas em Lucky é natural, mas no momento em que são ditas ganha-se uma aura de importância.

Este filme parece ter sido feito com uma aura de velho. Seus letreiros amarelos e grandes, e sua trilha sonora, baseada na gaita de Lucky e uns arranjos em torno do próprio vilarejo, além do rádio que ele sempre liga de manhã. Sua fotografia possui tons estelares e um tanto poéticos, com o escuro do bar salpicado de azul e dourado, o branco do consultório do médico, da mercearia onde Lucky sempre compra leite, ou a poeira cósmica que vai e vem pelas ruas da cidade. Assim como Lucky. No fim do dia, observamos no horizonte essas mesmas cores, mas no céu.

Alguns vão dizer que este é um filme parado que não vai para lugar algum. Esses alguns vão ter toda a razão. E a resposta para isso está no próprio filme. Não cabe a ninguém, nem o filme, dizer o sentido de tudo isso. As coisas são como são. Realismo é uma coisa. Estar assistindo a este filme, um verdadeiro privilégio.


“Lucky” (USA, 2017), escrito por Logan Sparks, Drago Sumonja, dirigido por John Carroll Lynch, com Harry Dean Stanton, David Lynch, Ron Livingston, Ed Begley Jr., Tom Skerritt


Trailer – Lucky

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