Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar | Nome longo e história curta


[dropcap]E[/dropcap]stou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar é daqueles documentários com nome longo e história curta. O nome longo foi tomado da música de Chico Buarque e a história curta das lembranças de Marcelo Gomes, diretor do filme.

As lembranças de Marcelo vêm de garoto, acompanhando o pai em suas viagens, de um tempo, ele lembra, em que as pessoas que viviam em Toritama eram pobres e a cidade silenciosa. Quando muito, um carro passando. Não existia nenhum trabalho que não fosse a simples, humilde e romantizada vida no agreste nordestino.

Então veio o jeans. O malvado jeans. Alguns ex-funcionários de uma falida fábrica iniciaram seu próprio negócio de suas casas, com suas próprias máquinas de costura e mão de obra. O negócio prosperou, outras pessoas imitaram e a cidade virou “capital nacional do jeans”. E nunca mais a cidadezinha ficou silenciosa de novo. Exceto no Carnaval, quando toda cidade vai pra praia e, para conseguir partir, elas vendem o que têm disponível, desde geladeira, televisão e até a velha máquina de costurar. Na volta compra tudo de novo, parcelado ou com dinheiro emprestado.

Há duas formas de enxergar o progresso na região: uma consequência do crescimento econômico já vista em vários lugares do mundo ou a escravidão auto-induzida pela ambição de ficar rico. Alguém ponderado exibiria uma visão dúbia e equilibrada desse fenômeno que move pessoas a trabalhar além do que podemos chamar de aceitável. E quando digo aceitável pretendo ignorar que na agricultura familiar há um esforço equivalente para se manter.

Essa pessoa que analisaria a questão dos dois lados não é Marcelo Gomes, pois ele sente que há algo de errado nisso tudo e o filme reflete seu não-conformismo. As pessoas trabalham demais, 12 horas por dia, e ganham muito bem, de acordo com elas mesmas. Mas ganhar bem compensa pelos esforços repetitivos e o insuportável barulho das máquinas? Resposta dos trabalhadores: são donos do seu negócio, criam sua própria rotina e usam tampões no ouvido para o barulho.

Enquanto Marcelo tem certeza em ter encontrado uma falha sistêmica nesse microcosmos no interior de Pernambuco eu acho que há uma falha fundamental em seu documentário, que é mais poético que informativo. E tenho provas disso, estão no próprio filme, e vou demonstrar com uma simples conta de matemática.

Uma garota é entrevistada sobre os ganhos de tanto trabalho. Ela dá exemplos em que um milhar de peças sendo feitas por dia lhe rende dez centavos por peça. Logo, uma manufatura de 2000 peças rende 200 reais para ela em um dia. Confere? Corta para o Carnaval: uma geladeira usada vendida para a viagem à praia vale 200 reais. Quando sabemos que pessoas vendem a geladeira para conseguir o que uma garota consegue trabalhando por um dia a conta não bate.

Poderíamos continuar essa análise mais exata se houvesse mais contas a ser feitas. Não há. O filme não é sobre fatos da vida, mas sobre os sentimentos represados de um cineasta disposto a colocar tudo pra fora, nem que para isso use um habitante que não bate muito bem da cabeça ruminando coisas ruins sobre o capitalismo e quebrando um tijolo inteiro bom durante as obras de construção de uma nova vila de costureiros.

Disseram a esse sujeito, que vira uma espécie de segundo narrador do filme, que o pagamento pela obra seria a chance dele trabalhar na área de costura. E este é mais um detalhe que não bate, já que se ouve de outras pessoas da cidade que só não trabalha com isso quem realmente não quer, pois oportunidade é o que não falta. Mas nunca vimos o rapaz trabalhando com isso. Ele surge dormindo na primeira cena e na segunda está aprontando no canteiro de obras, onde o senhor que realmente trabalha tira a camisa de tanto calor, enquanto não vemos nenhum suor escorrer do corpo desse rapaz que tanto fala e pouco de útil faz.

Enquanto a forma realista de Marcelo Gomes filmar, evitando cortar em cenas onde as pessoas perguntam se já pode começar ou quando uma garota diz estar com vergonha, são indícios que podemos ver mais do que nos seria permitido em um filme mais recortadinho, é a ironia do destino que transforma o maluco da cidade no porta-voz da razão no filme.

Daí surge a pergunta: quanto vale o esforço de quem não trabalha? O filme não responde essa pergunta. Mas imagino que o resultado dessa conta seja o mesmo para qualquer pessoa, em qualquer sociedade, capitalista ou não: zero.

Mas estou sendo parcial como nosso amigo diretor. Uma resposta mais honesta seria: quanto a nossa realidade permitir.


“Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar” (Bra, 2019), dirigido e escrito por Marcelo Gomes


Trailer – Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar

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