Democracia em Vertigem | Infelizmente não é ficção nem fantasia


[dropcap]E[/dropcap]m 1925, O Processo, livro de Franz Kafka foi lançado postumamente. Mostrava Josef K., um cara que acordava em um dia e descobria que teria que enfrentar um longo e exaustivo processo onde ele era acusado por algo que não sabia e nem tinha esperança de saber. É impossível não lembrar de O Processo ao ver Democracia em Vertigem.

Mas volte um ano nesse fim de década, Maria Ramos dirigiu O Processo, documentário que, ao mesmo tempo em que busca o mesmo assunto de Democracia em Vertigem, faz um caminho bem diferente. Enquanto O Processo é visceral e documental, seu primo mais novo é poético e esforçado, quer estar em boa companhia e ser admirado.

O Processo é um soco no estômago, Democracia em Vertigem é um abraço cheio de lagrimas quando você olha para trás e viu que tudo deu errado. E deu.

Ambos falam sobre o mesmo assunto, todo processo que levou ao impeachment da presidente Dilma Roussef, um acontecimento que, tanto parou o Brasil, quanto se mostrou um show de horrores estúpido, violento e que provoca um riso nervoso diante de um perigo intransponível. Mas sobre tudo isso, Democracia em Vertigem (assim como qualquer um dos O Processo) é sobre loucura.

Uma loucura que atinge o Brasil cada vez que ele vislumbra qualquer tipo de racionalidade política. Como a própria narração de Petra Costa diz, “a democracia no Brasil era um sonho”, seu filme mostra então que isso se tornou um pesadelo. Costa tem um ponto e tenta defende-lo com unhas, dentes, uma narração meio rebuscada e um choque de realidade.

Tentar entender o que realmente aconteceu é o mesmo que mergulhar em um abismo de loucura, ou pior, perambular pelos corredores do poder em Brasília e topar com um zoológico de figuras movidas, tanto por um apoio popular ensandecido, quanto “pela família”, pela memória de um torturador, “pelo primo”, tio ou sei lá mais quem tenha servido de combustível para seus votos na abertura do processo de impeachment.

Com muitas imagens exclusivas de sua câmera, mas também com muita coisa saída dos meios oficiais na época, a diretora não precisa de muito esforço para criar caricaturas desses deputados e senadores. Portanto, é fácil provar seu ponto de vista diante de tanta maluquice. Mas talvez, bem diferente do O Processo (o filme), a cineasta esteja muito mais preocupada em criar uma narrativa do que apontar sua câmera para os envolvidos e deixar a história contar sua versão.

Não existe isenção em Democracia em Vertigem assim como não existe isenção em absolutamente nenhum documentário. Ser um recorte da realidade é aceitar que não vai mostra-la inteira, mas Petra Costa vai mais além, não manipula (como muita gente pode acusa-la), mas força um ponto aqui e outro acolá. Monta uma história que começa algumas décadas atrás e vem se acumulando nesse momento chave onde, sem querer fazer um trocadilho, a tal democracia despenca em uma queda vertiginosa e televisionada.

O que Democracia em Vertigem tem de documental, tem de terror.

Por outro lado, toda essa experiência se torna ainda mais poderosa com a proximidade com que a diretora Petra Costa se coloca na história. Em Elena, filme de 2012, ela já testava essa aproximação, mas tinha uma ligação familiar muito mais profunda e pessoal, Democracia em Vertigem não foge da ideia de forçar essa aproximação e fazer com que Petra Costa seja uma personagem de seu próprio documentário.

Sua narração por vezes se torna forçada, talvez um pouco poético demais, quase como um Michael Moore mais versado nas letras. O texto não deixa de ser bonito, mas quando não parece acabar, parece desviar um pouco demais a atenção da história que quer ser contada. Não algo que atrapalhe a experiência, mas apenas cria uma barreira para quem busca algo mais visceral (como O Processo faz).

Ainda assim, essa aproximação talvez se mostre necessária até para a consciência da diretora Petra Costa, que tem uma ligação familiar com a empreiteira Andrade Gutierrez, mirada pela Operação Lava-Jato, mas lado pela qual ela acabou se afastando diante dos caminhos ideológicos dos pais. Sim, nada disso foi fruto de uma pesquisa extra filme, mas sim está lá, como parte de seu documentário. Talvez um pouco próximo demais, mas não tem como não aceitar o quanto isso humaniza o filme e o faz ser ainda mais emocionalmente pertinente.

Principalmente, pois esse esforço familiar está sempre entrelaçado com um desejo de fazer Democracia em Vertigem um tratado sobre o cenário político do Brasil. E isso ninguém pode dizer que não funciona.

O fim desse esforço chega perto, justamente, de dois dos principais protagonistas de todo esse processo de transformação do país: Lula e Dilma Roussef. Dela, é possível ver a força com que ela enfrentou esse período tão conturbado e esquizofrênico. E quando ela própria se diz ser o Joseph K, você entende e acredita no quanto ela foi esmagada por um sistema que recusou a ideia de sua presença entre os poderosos. Petra Costa constrói essa narrativa e não é tão difícil assim de acreditar nela.

Já enquanto acompanha Lula, tanto nos últimos passos do impeachment, quanto nos dias que precedem sua prisão, Petra Costa se esforça para construir um mito. Talvez um exagero que se permita funcionar dentro do filme, carregado pela mesma multidão que levou o ex-presidente para fora do prédio dos Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo.

Democracia em Vertigem é então esse esforço de Petra Costa para entender esse Brasil onde, como ela própria diz, “a democracia só funciona quando os ricos não se sentem ameaçados”. E se isso é imparcial tudo bem, cineastas tem todo direito e obrigação de serem imparciais, bem diferentes de um juiz, por exemplo.


“Democracia em Vertigem” (Bra, 2019), escrito por Petra Costa, Carol Pires, David Barker e Moara Passoni, dirigido por Petra Costa.


Trailer do Filme – Democracia em Vertigem

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