O Profeta | Não se esconde por trás das grades


Entre o azarão ganhador O Segredo de Seus Olhos e a barbada derrotada A Fita Branca, muito provavelmente, esse filme franco-italiano surgisse como uma terceira força, mas não de graça, O Profeta é um daqueles filmes de gênero, porém inquietos, que parecem mais preocupados em fazer algo novo dentro de um cenário corriqueiro do que de ganhar um ou outro prêmio.

Nele, somos apresentados a figura assustada de Malik um francês de origem árabe que chega ao um presídio e, se em um primeiro momento, parece só tentar sobreviver àquilo, não passa muito tempo começa a andar com suas próprias pernas, não só dentro, mas fora daqueles muros de concreto.

O roteiro do próprio diretor Jacques Audiard, em parceria com Thomas Bidegain, parece falar exatamente disso, de uma história de superação e sobrevivência, de um personagem que começa sem nada, acuado contra uma grade no pátio do presídio e acaba deixando aquilo tudo para trás, mas escoltado por um grupo de capangas. O Profeta não está ali para discutir culpa ou inocência, mas sim para fazer essa análise emocional desse personagem fortíssimo.

Mas isso só é possível por uma enorme sensibilidade de Audiard, que cria seu herói movido por uma situação muito maior que ele, que o afasta do assassino frio e logo de cara o faz, instintivamente, revidar contra um roubo de tênis em seu primeiro dia, uma atitude que o leva a uma surra, mas que demonstra exatamente para quem o espectador tem que apontar como herói no tempo que se seguir, alguém que luta por ele mesmo e faz questão de escolher bem suas lutas.

Indo contra a maré, Audiard não tenta se escorar no lugar comum do presidiário marrento e toma o caminho mais cumprido, onde cria um herói sem passado, a não ser por um machucado na cara e um monte de cicatrizes pelo corpo, alguém novo, dentro de um mar de clichês. Um filme sobre um criminoso, onde ele é tratado como ser-humano e não como anti-herói estereotipado.

O Malik de Audiard é carregado para esse vórtice de crimes por não ter para onde fugir, por ser jogado nesse mundo sem muito tempo para pensar nas opções. Ao fazer sua primeira vítima, não está só matando um homem, mas extirpando de sua vida a única pessoa que, mesmo que por um segundo, tenha botado em seu horizonte um raio de esperança (ainda que, ironicamente, seja esse crime que lhe faça continuar vivo naquela cadeia). Não um olhar pessimista, mas sim inevitável, já que Malik precisa carregar esse carma pelo resto do tempo, lhe fazendo companhia como um fantasma de sua consciência, que, ainda por cima, o ajuda a olhar para frente além daquelas barras.

Mas não só esse fantasma e sim um monte de situações e personagens que cruzam com Malik acabam enchendo-o, fazendo-o se transformar daquele personagem que logo de cara parecia muito mais uma casca vazia. O espectador o vê ganhando uma personalidade, que talvez nem seja muito diferente daquela do começo, mas com certeza é uma que parece muito mais preparada para todas as decisões que o movem nessa história emocionante. A cada mudança de rumo, Audiard até deixa uma grande legenda saltar à tela, talvez não para separar o filme em episódios, nem para demonstrar onde estão essas viradas, mas, muito provavelmente, para deixar claro para o espectador que aquela imagem confiante do fim do filme se formou com algumas poucas encruzilhadas e meia dúzia de esbarrões. Não a cargo da sorte, mas sim de um plano maior que o personagem parecia predestinado.

E essa estrutura funciona mais perfeitamente ainda por não tratar daquele presídio como uma crítica a situação carcerária (ou nada parecido), mas sim como a possibilidade de criar um microcosmo onde se pode ver alguns personagens ganhando vida e se transformando dentro daqueles limites, sem se preocupar com a credibilidade de uma ou outra ação, já que ali dentro daquele ambiente controlado, as regras são claras e as opções acabam se tornando escassas. Por três oportunidades, Malik sai da prisão por um período de um dia, e são nesses momentos que o espectador vê o quanto, ora ele não parece preparado para fazer aquilo, ora acaba sem ter opção.

Na rua, seu olhar acuado e perdido é o mesmo do primeiro dia encarcerado, só que, naquele momento, diante do perigo, sua opção deixa de afrontar seu agressor, mas sim permanecer submisso à situação. E mesmo que, nesses momentos ele sempre seja lembrado que está preso, ou por uma algema ou por uma revista no aeroporto, em todos os momentos que volta do “dia livre” trás consigo muito mais do que trouxe no começo, mais até que o punhado de areia em certo momento, como a lembrança da liberdade de chegar a lugares que nunca teria ousado em chegar, mas sim, nesses mesmos momentos, carregados de experiências.

E é isso que, no fim das contas faz O Profeta: um estudo impecável de personagem, desse jovem deslocado, francês de origem árabe que acaba virando o homem de confiança de um grande chefão corso, e que faz com que cada segundo naquele lugar seja um momento de aprendizagem (para melhor ou para pior). Um personagem que o espectador aprende a admirar por uma certa inocência e um senso de sobrevivência muito maior que aquelas paredes.

É justamente por isso que é fácil se emocionar quando, perto do fim a câmera corajosa de Audiard, que até aquele momento sempre preferiu grudar em seus personagens de modo nervoso, se abre para mostrar esse chefe da máfia, solitário, bem longe daquela figura imponente cercado de asseclas, agora indo em direção, talvez por esmolas, desse Malik, por sua vez, cercado por seu próprio séquito. Talvez a tristeza não venha só da figura do velho, que bem antes disso deixa seus olhos caírem perdidos ao descobrir que nunca saíra daquela prisão, mas sim por ver, talvez, aquele jovem inocente do começo do filme, encostado na grade, agora se tornar esse mesmo homem forte, uma versão árabe desse chefe da máfia, muito provavelmente, com todo seu orgulho de estar à beira da lei.

Muito embora, com o mesmo cuidado com que trata todo resto da trama, sem escorregar em uma banalização de toda situação, nem de colocar seu protagonista no mesmo balaio desses outros criminosos (talvez até um cuidado excessivo, porém compreensível, já que é por ele que o espectador tem que torcer), o faz olhar para a caixa praticamente vazia de coisas que ele trazia dentro do bolso quando entrou na prisão, e o faz levar embora apenas uma nota dobrada e amassada, que lhe foi negada a entrada, mas que ali servirá de âncora com tudo aquilo que ele passou. Mesmo que, muito diferente de seu começo, não serão mais um punhado de cicatrizes que servirão de contexto para sua nova vida, mas sim esses seis anos que conquistou dentro e fora daquelas grades.


Um Prophète” (Fra/Ita, 2009) escrito por Thomas Bidegain e Jacquer Audiard, dirigido por Jaqcques Audiard, com Tahar Rahim, Niels Arestrup, Adel Bencherif e Hichem Yacoubi


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