Noé


[dropcap]C[/dropcap]riar obras baseadas na Biblía são um desafio hoje em dia: embora claramente fantasiosas, aquelas histórias são consideradas por grande parte da população como realidade e, portanto, é inconcebível que um filme de ficção como este Noé se origine no livro sagrado do cristianismo. O diretor e, ao lado de Ari Handel, roteirista Darren Aronofsky – responsável por longas inesquecíveis como Réquiem para um Sonho, Pi e Cisne Negro – é ateu e, assim, acertadamente foca no lado humano e nos desafios morais, e não em mensagens religiosas, da história do homem responsável por salvar os animais e reconstruir o mundo depois de um dilúvio.

Noé é um espetáculo visual – os efeitos visuais conseguem construir animais e uma tempestade convincentes, mas são as paisagens desoladas e, de certa forma, pós-apocalípticas bem aproveitadas pela belíssima fotografia de Matthew Libatique que merecem destaque. Em meio ao CGI, os realizadores seguram a mão e não deixam a obra transformar-se em um “filme-desastre”, nunca esquecendo que a força da história vem de seus personagens e dos complexos dilemas por que passam, trazendo imagens que lembram mais um pesadelo do que um espetáculo. Quando a tempestade chega, ela é breve, e não é perdido tempo com cenas que seriam desnecessárias tentando, por exemplo, criar suspense e drama sobre se algum dos personagens na arca não sobreviverá ao dilúvio. Importante mesmo é o que acontece antes da embarcação e as decisões dos personagens sobre o que acontecerá quando a chuva parar. Os Guardiões, anjos de luz cobertos por pedra que parecem criaturas da Terra Média, são visualmente fascinantes e, apesar de sua principal função ser ajudar aquela pequena família a construir a arca (algo que, no filme, seria absurdo se conseguissem fazer sozinhos), também representam o isolamento do Criador de sua criação.

Russell Crowe conduz o filme com uma performance sincera e discreta, fazendo de Noé um homem atormentado pelas constantes dúvidas sobre qual seriam as verdadeiras intenções do Criador com a missão que passou a ele. Da mesma forma, Jennifer Connelly interpreta Naameh como uma mulher forte e uma mãe dedicada aos filhos, que segue o marido não por obediência cega, mas por realmente amar Noé e acreditar em sua missão. Dentre o elenco jovem, Emma Watson merece elogios por, mesmo que às vezes pareça que vá seguir por esse caminho, conter-se e não cair no overacting, e por não fazer feio ao lado dos veteranos Crowe e Connelly – a cena que divide com Crowe, em que Noé toma uma importante decisão após o fim das chuvas, é emocionalmente impactante e mostra que Watson é uma atriz talentosa. Logan Lerman também se sai bem como Cam, o filho mais novo de Noé, que questiona a missão do pai e seu próprio papel na reconstrução do mundo. Por outro lado, Douglas Booth, como o primogênito Shem, poderia ser substituído por uma tábua sem qualquer prejuízo ao filme, já que o ator mostra-se completamente sem carisma ou força em tela (algo aparentemente percebido pelos realizadores, já que Shem praticamente não aparece em cena quando adulto).

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Ainda falando no elenco, Anthony Hopkins faz o avó de Noé, Methuselah, um homem aparentemente mítico com cenas que não se encaixam muito no resto da narrativa, como quando ele encontra uma fruta no mato. Ray Winstone, no papel de Tubal-cain, fecha o elenco e representa o antagonista da história, um personagem que, apesar de eficiente e motivado, mesmo que de forma distorcida, pelo instinto de sobrevivência naquele mundo cruel em que o Criador se recusa a interferir até que seja tarde demais, extende sua presença na trama além do necessário.

No caminho para o renascimento do mundo, Noé e seus descendentes quase perdem a própria humanidade – e será que ela faria falta? Será que isso não seria necessário para uma verdadeira reconstrução? A missão de Noé é difícil, e é um fardo para ele realizá-la – mas ele acredita nela, torna-se obcecado pelo verdadeiro significado da mensagem passada a ele pelo Criador, e, portanto, fará o que for necessário. A realização é repleta de decisões difíceis e, muitas vezes, cruéis. Noé será, para sempre, atormentado pelo que fez buscando o sucesso do dever que lhe foi imposto. “O Criador me escolheu porque sabia que eu terminaria o trabalho”, ele declara. Noé e sua família não foram escolhidos por serem melhores que as outras pessoas – eles não são. São tão capazes de crueldade e egoísmo como qualquer ser humano – e, portanto, também capazes de sacrifícios, compaixão, misericórdia e amor. Noé apenas teve a sorte de ter os descendentes corretos.

A ausência total do tal ser superior do filme, que se “comunica” apenas através do sonho de Noé, mostra a solidão e a dificuldade de se viver em um mundo em que seu Criador mantém-se distante até decidir destruir toda a sua construção – e o roteiro (da mesma dupla responsável pelo subestimado A Fonte da Vida, que também lida de forma grandiosa mas, em sua essência, humana, com a fé), é inteligente ao não tentar trazer essa discussão para o “mundo real” e a rechear o filme com discussões sobre religião; em seu universo, é estabelecido que existe um ser superior. Reais mesmo são os desafios morais, as difíceis decisões que às vezes parecem – e nem sempre são – as únicas possíveis, e que muitas vezes, são as corretas. Noé, assim, não depende da fé, ou falta de fé, do público para emocionar, e se estabelece como um filme humano, tematicamente rico e moralmente complexo.


“Noah” (EUA, 2014), escrito por Darren Aronofsky e Ari Handel, dirigido por Darren Aronofsky, com Russell Crowe, Jennifer Connelly, Emma Watson, Logan Lerman, Anthony Hopkins, Ray Winstone, Douglas Booth


Trailer – Noé

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