Cinema sem Y | A Nova Geração de Princesas da Disney


[dropcap]A[/dropcap] princesa esperando o resgate do príncipe encantando, o beijo de amor verdadeiro como única forma de salvação, o casamento como objetivo principal. Fórmulas clássicas dos contos de fadas que a popularidade dos filmes de princesa da Disney ajudaram a criar e, assim, a construir ao lado da misoginia presente em nossa sociedade a noção de que esses são os únicos objetivos não apenas de suas protagonistas, mas também de garotas reais.

Assim, as primeiras protagonistas do estúdio – Branca de Neve, personagem título do primeiro longa-metragem de animação da Disney, Cinderela e Aurora, a Bela Adormecida – são passivas e dependem fortemente de seu príncipe encantando no cavalo branco para sua felicidade e mesmo sobrevivência. Destas, Cinderela é a que mais vai atrás de seus objetivo, só que este é ir ao baile, onde se apaixona pelo príncipe que finalmente a livrará da vida sofrida que leva como escrava de sua madrasta.

Branca de Neve

Entre 1989 e 1999, na década conhecida como o Renascimento da Disney, o estúdio passou a investir em protagonistas determinadas e independentes, de personalidade forte e bem desenvolvida, com sonhos e objetivos próprios – mesmo que, claro, sempre terminassem com o “felizes para sempre” depois do casamento com o protagonista masculino, salvo as exceções de Mulan e Pocahontas. Vale destacar também a diversidade racial das princesas deste período: das cinco princesas, apenas Ariel e Bela são brancas.

Apesar de Mulan ter que superar os obstáculos impostos por sua condição de mulher em seu filme, sua história é a menos focada em romance deste período, e seu futuro com o amado Li Shang fica encaminhado ao final do longa, mas não é o motivo de felicidade da protagonista: seu objetivo era lutar na guerra contra os Unos, da qual saiu-se não apenas vitoriosa, mas como heroína da China. Já Pocahontas é a única princesa deste período que não termina ao lado de seu interesse romântico, e sua história é mais sobre ensinar o inglês John Smith a perceber o mundo através de seus olhos (o que pode dar certo na ficção e em casos isolados, mas, obviamente, não fez diferença alguma no massacre dos índios norte-americanos pelos colonizadores ingleses).

Vários textos na internet destacam que Ariel abandonou sua vida no mar em troca do amor do príncipe humano. Isso não é verdade – Eric foi mais a gota d’água, já que a sereia já desejava conhecer o mundo terreno há muito tempo (a canção “Parte do Seu Mundo” é cantada antes de Ariel encontrar o príncipe). Mas é inegável que é seu laço com o príncipe que a mantém naquele mundo e a faz não querer voltar a ser sereia ao final do filme – mais uma vez, o casamento é o “felizes para sempre”. O mesmo acontece com Bela e, neste caso, mesmo que acompanhemos o desenvolvimento do relacionamento entre a garota e a Fera, trata-se, em certo nível, de um caso de Síndrome de Estocolmo, em que uma pessoa em situação de emprisionamento passa a se importar e a defender o captor. São sintomas da normalização da submissão feminina, mesmo tratando-se de uma protagonista sonhadora, ambiciosa e apaixonada por histórias – ou seja, multifacetada – como é o caso de Bela.

Já Jasmine, a amada de Aladdin, é um caso à parte – é a única das princesas oficiais da Disney a não ser a protagonista de seu longa-metragem. Independente e determinada, ela está decidida a não se sujeitar às ordens do pai de encontrar um pretendente, e só casará por amor. Aladdin, o protagonista, é decidido, aventuroso e divertido, e entendemos porque ele conquistou o coração da princesa.

Jasmine

Nestas personagens, percebe-se a intenção do estúdio – incentivado pelos desejos das meninas da plateia, buscando algo mais do que princesas indefesas à espera de salvação, e pelo avanço nos direitos das mulheres e de discussões feministas – de criar personagens femininas com objetivos e personalidades diversificadas. Ainda assim, na maioria dos casos, a certeza da felicidade eterna da princesa depois que o filme termina é o casamento.

A partir de 2009, com o fraco A Princesa e o Sapo, as coisas começam a mudar novamente, ainda que este título seja apenas um pequeno passo rumo às mudanças que aconteceriam a partir de Enrolados. A primeira princesa negra da Disney, Tiana, sofre com a decisão do estúdio de ambientar a grande parte da história em um pântano, desperdiçando o cenário e a cultura de New Orleans, além de passar a maioria do tempo do filme como rã. A protagonista, ao menos, tem como principal objetivo trabalhar duro e conseguir abrir seu próprio restaurante (de tal forma que esta acaba se tornando sua única característica), e o tal “beijo de amor verdadeiro”, que aqui não precisava necessariamente ser de amor, dependendo apenas da condição de princesa da garota, acaba salvando tanto ela quanto o príncipe.

Enrolados

No ano seguinte, a versão da Disney para a história de Rapunzel trouxe uma bem-vinda atualização no conto da princesa aprisionada em uma torre – quando o ladrão Flynn Rider aparece em sua vida, ela rapidamente aproveita a oportunidade e, tomando o controle da situação, o força a levá-la para ver as luzes no palácio, algo que ela sonha em presenciar há anos. Assim, a mais típica história da princesa em busca da salvação do príncipe, aqui, é protagonizada por uma garota determinada, divertida, esperta e corajosa. Inovadora também é a falta do beijo salvador; muito pelo contrário – aqui, é Rapunzel quem salva Flynn com a mágica de seus cabelos. Assim como em Mulan, o matrimônio do casal está no futuro, e a garantia da felicidade da princesa é o reencontro com seus pais, e não o casamento.

Mas o romance como único objetivo não é o único problema na caracterização das mulheres da Disney. Em todos os filmes citados acima, a princesa ou é a única personagem feminina do longa, ou é perseguida por uma vilã. Que, sim, podem ser icônicas e interessantes, como a Malévola de A Bela Adormecida ou a Úrsula de A Pequena Sereia, mas a tendência de colocar mulheres sempre em lados diferentes da batalha é um sintoma de uma sociedade que faz o mesmo, retratando mulheres como incapazes de não enxergarem umas às outras como rivais. É por isso, portanto, que, depois de passar décadas trabalhando a agência de suas protagonistas, o estúdio livrou-se dessa ideia e, finalmente, passou a trabalhar os relacionamentos entre personagens femininas em seus filmes de princesa. O relacionamento entre Rapunzel e seus pais, apesar da busca deles pela filha ser destacada no longa, não é muito trabalhado; o mesmo acontece com Tiana e sua mãe e mesmo com sua melhor amiga, Charlotte, uma garota mimada que tem pouco o que fazer em A Princesa e o Sapo.

Frozen – Uma Aventura Congelante, que conquistou o terceiro lugar no topo das bilheterias em 2013, foi a primeira animação do estúdio a trazer duas protagonistas femininas e a colocá-las do mesmo lado da história. A rainha Elsa, uma personagem que poderia facilmente se estabelecer como a vilã do filme (e que aparecia assim nos primeiros tratamentos do roteiro), é, ao invés disso, vítima de seu imenso poder, e o papel de salvá-la não cabe a um homem, mas à própria irmã, a princesa Anna. O relacionamento entre as irmãs é o centro do filme e é desenvolvido de forma complexa, retratando como ambas foram afetadas pelo afastamento forçado pelos poderes da primogênita. Crescendo isolada, é compreensível que a extrovertida e alegre Anna se encante à primeira vista pelo charmoso Han, mas os planos dos dois de se casarem são rapidamente impedidos pela rainha – “Você não pode se casar com alguém que acabou de conhecer”, declara Elsa, assim pondo um fim definitivo à tradição de que basta o príncipe salvar a mocinha em perigo que ele terá sua mão em casamento.

Frozen

A roteirista Jennifer Lee (que também co-dirigiu o filme, ao lado de Chris Buck) brinca com essas tradições do estúdio, revertendo-as e, no processo, inaugurando uma nova era para as princesas. O “beijo de amor verdadeiro” continua aqui e, pela primeira vez na história da Disney, o amor verdadeiro não é o amor romântico, mas o amor familiar de duas irmãs, que tanto precisam uma da outra. Além disso, é importante também que, para livrar-se do gelo de Elsa que atingiu seu coração, é a própria Anna que comete o ato de amor verdadeiro e, assim, salva a si própria – outra importante mudança. Além de não serem rivais, as duas mulheres de Frozen são donas da própria história, personagens atuantes e independentes.

Finalmente, o live action Malévola, em 2014, não se encaixa necessariamente nos filmes de princesa por si só, já que o título é atribuído exclusivamente às animações, mas, por ser uma nova versão da Bela Adormecida e recontar uma história popularizada pelo estúdio, também faz sua parte na modernização destas personagens. Antes uma vilã de visual interessante mas sem motivações muito complexas, Malévola era uma poderosa fada que amaldiçoou a recém-nascida Aurora apenas porque o rei e a rainha não a convidaram para o batizado da princesa. No novo longa, o ato de Malévola é motivado por vingança, já que o rei Stefan a violentou profundamente ao roubar suas poderosas asas. Assim, de vilã amargurada, Malévola passa a ser uma fada que, antes bondosa e gentil, é tomada pela violência da traição que a fez parar de acreditar no próprio amor e na bondade, tornando-a incapaz de confiar em alguém, o que a leva a amaldiçoar uma criança inocente.

E é a própria Aurora e o carinho que Malévola inspira na garota – devido à incompetência das três fadas responsáveis por cuidar da princesa, a protagonista passa a observar Aurora e a cuidar dela à distância – que fazem com que ela perceba que ainda é capaz de amar e de se redimir do mal que cometeu. Mais uma vez, o ato de amor verdadeiro que salvará a princesa não é o beijo do príncipe (que tenta, mas falha em acordar a Bela Adormecida), mas o amor de Malévola.

Malévola já arrecadou mais de 500 milhões de dólares ao redor do mundo. O enorme sucesso desta obra e de Frozen mostram que, muito longe de afastar o público, histórias protagonizadas por mulheres – e por mulheres que não dependem do auxílio ou do amor de um homem – são capazes de atrair ótimas bilheterias. Ainda assim, Enrolados não foi intitulado Rapunzel pela opinião dos executivos de que o nome da princesa afastaria os meninos do cinema, mesmo motivo porque os trailers de Frozen focavam principalmente no boneco de neve e na rena, personagens divertidos, ao invés de destacar as protagonistas – que, na maioria das versões dos pôsteres e de capas de DVDs e Blu-rays, ocupam o mesmo espaço que os dois principais personagens masculinos do longa.

Ainda há um longo caminho a percorrer no sentido de parar de agir como se filmes protagonizados por mulheres sejam um nicho e que afastem o “grande público” – que, ao contrário do que muitos pensam, é formado principalmente por mulheres, que nos Estados Unidos integram 51% da audiência das salas de cinema. É necessário investir mais na diversidade, pois, com exceção de Tiana (que, como destacado, passa a maior parte da projeção como rã), as princesas mais recentes são todas brancas. A evolução das princesas da Disney, sempre as personagens mais populares e históricas do estúdio, é um fenômeno gradual que, finalmente, permite que elas protagonizem suas narrativas sem a necessidade de um príncipe encantado esperando no final. O amado não precisa desaparecer – como mostra Frozen – mas não pode ser a única coisa que move a história, seja salvando a princesa ou garantindo a felicidade eterna da garota através do sagrado matrimônio. Existem objetivos mais nobres, mais importantes – e a princesa, agora, é a heroína de sua própria história.

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3 Comentários. Deixe novo

  • Entendi Mariana. Já suspeitava que o motivo seria esse. Mas acho que ela se encaixa tão bem em tudo o que você escreveu que podia ter rolado uma menção. ;P

    De toda forma, excelente texto, muito bom ver que a Disney evoluiu! Abraços!

  • Mariana González
    04/09/2014 14:20

    Felipe, apesar de a Merida ter sido incluída na lista oficial de prinesas da Disney, a Pixar funciona de forma diferente, e eu decidi mencionar apenas as princesas de filmes da própria Disney no texto.

  • Como puderam esquecer de citar Valente nesse texto?

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