Cinema Sem Y A Bruxa

Cinema sem Y | A Bruxa: sobre garotas, maldade e tentação

Atenção: este texto contém detalhes sobre a trama de A Bruxa.


A Bruxa, primeiro longa-metragem escrito e dirigido por Robert Eggers, é um dos melhores e mais marcantes filmes de terror dos últimos anos — na crítica para o CinemAqui, descrevi-o como “uma obra sufocante, aterrorizante e perversa”, transcorrida em “um inferno claustrofóbico em que o próprio Satã brinca livremente”.

Mas o que torna A Bruxa tão marcante não é apenas a direção, a fotografia, o design de produção e os diálogos, que transportam o espectador até os medos e paranoias da Nova Inglaterra de 1630. O filme retrata a maldade de uma forma interessante, especialmente levando em consideração que esta é centrada em duas figuras femininas: a bruxa que sequestra o bebê e seduz Caleb e, claro, a protagonista da história, a jovem Thomasin.

Através dela, mais do que um registro de toda a paranoia e fervor religioso que permeia a família, o filme faz um retrato do amadurecimento feminino — algo tão arraigado nas religiões (e na sociedade) como fonte de pecado e tentação, como algo que deve ser controlado e diminuído. Assim, conforme o mal se aproxima daquela família e suas relações afetivas — e tudo o que eles conhecem (ou acham conhecer) começam a desmoronar —, Thomasin se torna o foco do medo de todos, principalmente do pai. Ora, se o demônio alcançou aquela família, se há uma bruxa entre eles, quem mais poderia ser, além da jovem garota?

Em uma noite, os pais conversam aos sussurros sobre o que farão diante da fome cada vez mais severa — além de tudo o que está acontecendo, eles também lidam com o fracasso de sua safra. O diálogo rapidamente se volta para uma solução que parece óbvia; é, certamente, algo bastante aceitável — e esperado — considerando a época: Thomasin pode ir servir a outra família. O fardo recai sobre ela não apenas por ser a filha mais velha, mas por ser mulher — uma garota demonstrando os primeiros sinais de maturidade sexual e, portanto, já preparada para ir enfrentar o mundo e, claro, arrumar um marido.

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Por mais que, de início, Thomasin se comporte como uma garota discreta e modesta, seu descontentamento com sua situação é sempre escancarada — chegando ao ápice quando ela finalmente responde aos insultos do pai que, claro, recorre a xingá-la de “vagabunda”. Quando a suspeita pelos atos demoníacos cai sobre ela, simplesmente não há o que Thomasin possa fazer para convencer a família — as pessoas que deveriam amar e cuidar dela — de que ela é inocente.

Afinal, Thomasin foi a última a ver o pequeno Sam vivo, enquanto brincava com ele na fronteira da floresta proibida. Foi ela quem acompanhou Caleb floresta adentro antes de ele sumir, e quem o encontrou tremendo e nu, à noite. Enquanto isso, a verdadeira bruxa já havia seduzido Caleb, ao disfarçar sua pele enrugada com o manto de uma bela — e jovem — mulher. E era Caleb quem lançava olhares de cobiça às formas femininas da garota. Mas é ela, sempre, quem é acusada.

Até que todos os horrores causados à família alcançam seu clímax. No dia seguinte, apenas a mãe e a filha encontram-se vivas. Thomasin, mais uma vez, leva a culpa — e, em um confronto, é forçada a matar a mãe, que havia tratado-a como inimiga por um longo tempo. Inveja de sua juventude e beleza? Medo — não só de sua suposta bruxaria, mas do poder inerente a uma bela garota? Aqui, não há espaço para diálogos e discussões, apenas para desconfiança e medo.

Thomasin, assim, fica sozinha, fadada a um futuro de fome e miséria que, muito em breve, levariam-na para a companhia do resto de sua família. Eis que o diabo finalmente dá as caras, assumindo a figura do bode, e oferece uma alternativa para a jovem. “Você gostaria de viver deliciosamente?”. Uma oferta tentadora para qualquer um que, para Thomasin, representa coisas com as quais ela jamais havia sequer se permitido sonhar — conforto. Riquezas. Banquetes. Elegância.

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Ela, então, se despe e acompanha o demônio até o coração da floresta — onde encontra um círculo de mulheres igualmente despidas, em êxtase. Thomasin se une às bruxas e, assim como elas, flutua noite acima. Em seus olhos, a liberdade que ela jamais havia conhecido, que ela jamais encontraria em sua antiga existência. Abraçando a maldade, ela se livra de todo o mal que já conhecia, encontrando libertação justamente naquilo que a oprimia e condenava.

No mundo de A Bruxa, portanto, há duas opções — apagar e diminuir tudo o que há dentro dela para se enquadrar na ideia do que é ser mulher naquele período e lugar, ou abandonar civilização, família e “luz” para poder conhecer e experimentar tudo o que o mundo tem a oferecer.

Como sabemos, não foi apenas na ficção que mulheres foram consideradas “bruxas” por pura ignorância e misoginia. Aliás, é interessante perceber como, em A Bruxa, acompanhamos a história através dos olhos de alguém que realmente parece se encontrar naquele contexto; não há tentativas de contornar o arco dramático de Thomasin com conceitos e desconstruções modernos, pelo contrário — se somos capazes de percebê-los, é justamente porque o medo do poder feminino e a tentativa de controlá-lo são algo antigo.

E, por isso, conseguimos entender porque Thomasin quis deixar tudo isso para trás e ir “viver deliciosamente”.

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