Cinefilia Crônica | No escurinho do cinema… sozinho

(Originalmente publicado no nosso querido e falecido QLivros)


Não é raro eu ter de responder a perguntas das pessoas mais próximas sobre um novo filme, um clássico ou uma boa indicação na Netflix. Gosto bastante de cinema, por isso não entendo um amigo de olhos puxados: ele diz não ter paciência para ficar duas horas em frente a uma tela vendo ficção.

Estou longe de ser algum especialista, mas tenho até minha lista particular dos próximos filmes a assistir. Devo ter herdado esse vício do pai. Ir à locadora pegar três filmes em VHS na sexta-feira para devolver apenas na segunda era o melhor programa dos fins de semana em uma época da infância. O local virou um condomínio, o que me faz evitar passar por aquela rua, sob o risco de algumas lágrimas disfarçadas salgarem minha língua.

Mesmo cinéfilo, demorei muito tempo para descobrir as maravilhas de ir ao cinema sozinho, de preferência à tarde. Foi no mês passado. Superei as saudades da locadora e compro o ingresso com antecedência, pela internet, e virou um costume me dedicar a um programa antes visto por mim como depressivo, hoje indispensável.

Escolho o filme de minha preferência no melhor horário para mim, saúdo a futura diabetes com a pipoca mais doce possível e não discuto tentando convencer ninguém sobre as vantagens dos legendados sobre os dublados (pelo amor de Deus, quem fala “macacos me mordam”, “seu filho da mãe” ou qualquer xingamento seguido de um inacreditável “duma figa”?).

Ir ao cinema como desculpa para pegação é coisa de adolescentes inseguros. Pelo preço cobrado em ingressos e guloseimas infartantes nas salas com telas do tamanho do mundo e um som convincente de que vivemos aquela história, quero ver o primeiro dos trailers e ler todos os participantes da produção nos créditos finais, sem ninguém me incomodando.

– Nossa, como você consegue ficar ali, sem ninguém para conversar?
Respondi a essa pergunta quando disse que voltava da estreia de um filme de guerra.

– Prefiro um barzinho com uma cerveja gelada nos momentos de desabafos ou compartilhamento de causos, cinema não é para isso, na boa.

E quando não escolhemos os blockbusters pasteurizados, quem se surpreende recusa um convite. Melhor assim, o som excessivo de tiros sem sentido, carros correndo rumo a lugar algum ou se transformando em monstrinhos para animar as crianças são a cura para minha insônia. Tenho vergonha de ser pego dormindo em uma dessas poltronas.

Não é à toa minha preferência pelo horário da tarde. As chances de topar com uma sala mais vazia são maiores. De não cruzar com uma molecada falando alto tentando chamar atenção, menores. De buscar um buraco para se enterrar no chão de tanta vergonha ao ouvir aplausos perante a tela, quase impossíveis.

Desconfio que levo filmes a sério, há quem tenha certeza disso. Talvez por escrever ou outra das minhas tantas manias loucas, não sei. Nem falo de uma possível neurose que já me fez procurar câmeras em situações bizarras que me faziam pensar em algo combinado. Mas não é raro eu ter uma cena da telona como referência para explicar o inexplicável.

Raro mesmo é entender o porquê de eu ter demorado tanto tempo para tomar coragem e descobrir que ir ao cinema sozinho é bem bom. Mesmo. Não perco mais uma estreia daqueles filmes listados em meu bloco de notas.

Amigo meu disse que sou louco, pois fui à estreia de um filme argentino. Não sei se misturou a estupefação com a rivalidade do futebol, mas pareceu até ficar preocupado pelo gosto, segundo ele, peculiar. Rebati lembrando que ele come azeitonas, jaca, envia piadas de tiozão e pornografia animal nos grupos do WhatsApp, fora as chatíssimas mensagens motivacionais todas as manhãs, o que é muito mais grave do que admirar as películas dos hermanos. Estranhamente, ele não tem falado comigo nas últimas semanas.

E filmes argentinos são espetaculares, como tantos outros brasileiros escondidos de quem só enxerga valor nas produções “dos States”.

Hoje à noite, vou ao cinema acompanhado. O filme é brasileiro, o que vai evitar discussões entre dublado e legendado, bem como as acusações de chatice por bater o pé pelas letrinhas na parte de baixo da tela. Conversinhas durante a sessão me irritarão mais do que uma possível ruindade do filme – a segunda hipótese é bem improvável. Já avisei a moça que pegação dentro da sala é coisa de adolescente, deixemos pra depois.

Se algo a mais surgir desse primeiro filme, vai ser quase uma reeducação mudar minha cultura do monopólio na escolha de filmes, no Netflix da SmarTV ou no cinema. Só não abro mão das legendas.

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