Cam | Original, atual e desesperador


[dropcap]O[/dropcap] que diferencia quem nós somos de verdade da versão que criamos para nós mesmos na internet? E mais: qual é a nossa relação com essa versão idealizada de nós mesmos? Cam, filme de terror lançado na Netflix que poderia ser um episódio light de Black Mirror, acerta ao abordar esse dilema moderno de maneira tensa e estilosa.

Alice (Madeline Brewer), mais conhecida pelo seu alter ego virtual Lola, trabalha como cam girl e, determinada a entrar para o Top 50 do site, planeja cuidadosamente seus shows vários dos quais incluem simulações de suicídio, entre outros truques para engajar seus fiéis espectadores.

Tudo parece estar indo bem para Lola: o Top 50 chega, ela vive confortavelmente e suas regras para gerenciar a carreira funciona, como não dizer aos espectadores que ela os ama. Até que, certo dia, Alice não consegue logar em sua conta e, para seu assombro, descobre uma garota idêntica a ela, em um quarto quase igual ao seu, transmitindo ao vivo como Lola.

A partir daí, Alice tenta desesperadamente retomar o controle sua carreira (e sua vida) e, é claro, descobrir quem está por trás daquilo. Afinal, é muito mais do que uma questão de rivalidade a “nova” Lola é ainda mais radical do que Alice, consegue chegar ao Top 20 do site e não hesita em declarar seu amor ao público. É uma afronta à imagem cuidadosamente construída por Alice, mas também é tudo aquilo que a garota queria ter e ainda não conquistou.

A roteirista de Cam é Isa Mazzei, uma ex-cam girl que, aqui, aborda os dilemas que a assombravam de forma exacerbada e autêntica ter o ponto de vista feminino dela é fundamental para que o diretor Daniel Goldhaber não ultrapasse a tênue linha que separa o longa da hiper sexualização de suas personagens, o que fortalece o arco dramático de Alice e permite que o filme realmente explore suas temáticas sem tornar-se apenas um show como os que a protagonista organiza. Nesse contexto, Madeline Brewer (que você talvez conheça como a Janine de The Handmaid’s Tale) tem a oportunidade de imprimir tanto sensualidade e obsessão quanto vulnerabilidade e desespero a Alice.

Aliás, não é à toa que a protagonista leva o nome da garota que aventurou-se pelo País das Maravilhas. Fortalecendo a referência à obra de Lewis Carrol também nos nomes de usuários que Alice utiliza para “espiar” as demais cam girls, Cam a leva quase que literalmente através do espelho, enquanto Goldhaber brinca com o reflexo de Lola e com o surrealismo de estar observando a si mesma, ou uma versão de si mesma, através de uma tela de computador. Algo tão familiar e cotidiano a todos nós hoje em dia, aqui, é exposto por seus contornos bizarros.

Pois, se Alice cuidadosamente estabelece Lola como uma versão fictícia de si mesma, como alguém criado apenas para fins daquele trabalho, o fato é que seu alter ego domina sua vida inteira. A casa em que ela mora foi adquirida graças aos rendimentos do site e suas únicas amigas são outras cam girls; sua própria família não a compreende e não a aceita. Quando ela pede ajuda da polícia, eles imediatamente assumem uma atitude machista e condescendente ao descobrirem com o que ela trabalha.

Esse é outro ponto em que Cam acerta, e outra amostra de como o longa se beneficia de ter Mazzei como roteirista — de uma forma ou de outra, todos os homens que cruzam o caminho de Alice abusam dela. Mazzei entende o jogo de poder entre as cam girls e seus espectadores e a visão masculina de que, se uma mulher decide expor parte de si, a decisão sobre quando e como ela vai fazer isso não é dela, mas de seu público.

Tudo isso leva Cam a um terceiro ato envolvente, em que a discussão central do longa — identidade real x identidade fabricada — é concluída de maneira eficaz. Ainda que o longa não seja particularmente inventivo em sua estética para além das luzes neon que o banham ou que nem todos os pontos que levanta sejam tão bem explorados, ainda assim trata-se de uma obra original, atual e que cumpre bem o seu propósito.


“Cam” (EUA, 2018), escrito por Iza Mazzei, Daniel Goldhaber e Isabelle Link-Levy, dirigido por Daniel Goldhaber, com Madeline Brewer, Patch Darragh, Melora Walters, Devin Druid, Imani Hakim, Michael Dempsey, Flora Diaz, Samantha Robinson e Jessica Parker Kennedy


Trailer do Filme – Cam

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